«Temos de alinhar as nossas exigências às condições do nosso tempo. Eu começaria então por aqui: os gestos que nos definem como portugueses, os interesses que nos movem, os hábitos que cultivamos, as pessoas que admiramos, as rotinas que estabelecemos em casa e no bairro onde vivemos, também no emprego para onde vamos todos os dias, as casas que decidimos erguer ou comprar, as árvores que vemos crescer, os políticos que elegemos e como nos relacionamos com eles. As leis que cumprimos e as que optamos por ignorar.
Ao fim de muitos e muitos anos, o que resulta desta soma de escolhas, boas e más, somos nós, os portugueses ao espelho, um povo reflectido na soma de tudo isto. É evidente que há acontecimentos brutais, como os incêndios de há uma semana, que podem ir muito além desta soma de características. Podem ser o resultado da sorte e do azar. Mas pode também dar-se o caso de esta sucessão de eventos trágicos ser a consequência da trajectória que escolhemos percorrer como comunidade, um caminho feito por vontade própria ou então pela mais estúpida das inércias, a motivada pelo desinteresse e desmazelo colectivos.
Chega então o momento da contagem dos mortos e dos hectares destruídos, quase 50 mil, uma barbaridade, e apontamos logo o dedo agressivo aos políticos, evidentemente culpados pela incúria de anos e talvez até pela gestão danosa dos recursos públicos. Têm responsabilidade os políticos, é verdade; nalguns casos têm até culpa, terão de ser os tribunais a julgar, mas antes de olhar para quem nos conduz devíamos olhar para nós próprios e voltar ao início: somar as características que exibimos, cultivamos e favorecemos como povo e daí tirar daí conclusões. Podemos até escolher factos pequenos, coisas sem importância do dia-a-dia, mas que começam por dizer quem somos.
Por exemplo, é proibido levar os cães para as praias concessionadas. E no entanto é vê-los a andar pelo areal, fazendo o que os animais fazem quando têm vontade, sem que a polícia faça cumprir a lei. Acontece o mesmo nas ruas de Lisboa, porcaria por toda a parte, um nojo inacreditável, passeios de sujidade medieval. Aceitamos e seguimos em frente, faz parte da paisagem como a floresta desordenada. O problema não são os cães, não é o eucalipto, somos nós. E um dia há uma doença qualquer, uma criança que vai para o hospital, uma daquelas micro calamidades urbanas que estimula o interesse jornalístico e provoca a indignação - geral, genérica, tardia.
Num país sem guerra, a preparação para a época de incêndios deveria ser a nossa guerra, talvez uma e várias, como em tempos o foi a redução da mortalidade infantil. Não há milagres, há anos piores ou melhores que dependem de vários factores, mas a evolução consistente exige esforço, obriga o cumprimento de rotinas de trabalho. Os aviões caem pouco porque há um método que tem de ser seguido pelos pilotos em todos os voos: há uma manual a seguir linha a linha, sem falhas. As mortes por infecção hospitalar diminuem sempre que são cumpridos os protocolos, alguns deles elementares: os médicos lavam as mãos após cada consulta, não passeiam os estetoscópio ao pescoço.
As pessoas, nós, os portugueses, queremos culpar os políticos por causa dos incêndios. Eles têm uma parte central da responsabilidade, mas a desgraça que vivemos é o resultado das nossas escolhas, uma a uma, todas somadas. O ponto é este. Algumas são opções pessoais - os nossos terrenos que não limpamos, os piqueniques que fazemos, os foguetes que lançamos, as práticas perigosas que toleramos, a beata que atiramos pela janela do carro. Outras colectivas, como os políticos que elegemos anos após ano, fruto da apatia generalizada e da cultura de compadrio.
Sim, o SIRESP é um negócio muito suspeito - não vinha com garantia? A ministra da Administração Interna e o Governo foram apanhados desprevenidos, como sempre. A GNR, a Protecção Civil e os bombeiros são tudo menos um corpo coeso. Vamos então apurar responsabilidades, sim, mas é bom que entendamos: hoje somos uma nação de especialistas em incêndios, amanhã voltaremos a ser os pirómanos do costume. (...)»
(André Macedo: "Os pirómanos do costume" . Na íntegra: aqui. Sublinhado meu)
*Digo "nós", porque não quero excluir-me da responsabilização atribuída ao colectivo nacional. Tal não significa, porém, que o "nós" inclua todos os portugueses. Ainda há, felizmente, muitos cidadãos com elevado sentido de responsabilidade.
(ilustração daqui)
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