sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

"Acerca da ética do ódio e da credibilidade do jornalismo a sério"

«(...)
Diana Andringa, jornalista veterana, publicou há semanas Funcionários da Verdade, que nos ajuda a perceber alguns dos mais banais (...) riscos na vida dos jornalistas. O livro, que é uma tese de doutoramento e que apresenta uma investigação cuidada sobre a selecção das prioridades noticiosas, o alinhamento dos telejornais, a escolha dos temas noticiáveis e dos temas não-noticiáveis, usa alguns casos fortes para retratar a vida na TV portuguesa: o caso Subtil (um homem que se barricou numa casa de banho da entrada da RTP), a cobertura da campanha do referendo sobre o aborto e o caso do “arrastão” de Carcavelos. Em todos eles, houve enviesamento, escolhas duvidosas, populismo mediático, preconceitos, a lei do mercado das audiências a determinar erros de informação e até notícias falsas.

(...)

No entanto, nada nos prepararia para a ética do ódio, como a que surgiu vibrante no caso Sócrates. Ora, foi neste processo e foi entre jornalistas, como Manuel Carvalho sublinhou, que se exprimiu o mais desbragado ajuste de contas.

Francisco Gonçalves, “editor do Mundo” no Correio da Manhã, destacada função, escreve que José Sócrates não “parece merecer melhor destino do que a prisão”, até porque “se há alguma coisa a lamentar no seu caso é que a detenção tenha chegado tão tarde”.

No PÚBLICO, João Miguel Tavares clamou pelo seu direito pessoal “de presumir, face ao que leio nos jornais, às minhas deduções, às minhas convicções, à minha experiência, à minha memória e ao esgotamento de sete presunções de inocência, que Sócrates é culpado daquilo de que o acusam”. Ou seja, pelas “minhas deduções” e pela “minha experiência” em coisas como a compra da TVI pela PT, “presumo” que Sócrates recebeu não sei quantos milhões de euros sei lá de quem e que comprou uma casa milionária no Seizième.

Com o mesmo acinte, José Manuel Fernandes argumenta superiormente, noObservador, que “a a dúvida que havia sobre José Sócrates era sobre se seria algum dia apanhado”.

Ou seja, todos eles sabem que o homem é culpado e lamentam que a detenção seja tardia. Têm motivos de sobra para ter a certeza que ainda falta ao tribunal: João Miguel Tavares foi levado a tribunal por Sócrates, num processo patético por difamação, logo sabe que um sujeito tão arreliante só pode ser culpado; José Manuel Fernandes sabe, simplesmente porque sabe tudo; e o homem do Correio da Manhã sabe porque decerto leu as manchetes do seu jornal.

Ora, quando os jornalistas escrevem opinião – dizendo o que entendem sobre o que entendem – estão a arriscar-se a subordinar o seu dever de informação, bem como o peso social gerado pela visibilidade da função de informar, ao seu direito de ajustarem contas, de tomarem partido, até de suspeitarem. É porque são jornalistas com coluna publicada ou com editorial que a sua opinião conta, ou seja, importam porque se presume que farão o trabalho de jornalistas, mesmo quando o estão a contrariar, substituindo informação por uma campanha. Naturalmente, quando se dedicam a fazê-lo sob a forma sublime da conversa de café, o uso do poder discricionário da sua opinião sentenciosa é mais flagrante.

Este é o caso dos acórdãos de Tavares, Fernandes e Gonçalves sobre o processo em apreço. De facto, eles não sabem nada: não sabem o suficiente sobre os factos, porque ninguém o sabe entre o público, e mostram saber pouco sobre a lei, que tinham obrigação de conhecer. E, se apresentam conclusões, simplesmente porque consideram que o seu próprio ódio pessoal é suficiente para condenar outrem, estão não só a desmerecer a profissão de jornalista, porque abusam do seu poder, como estão a escrever torto por linhas pouco direitas.

O que se esperaria de um jornalista seria o tratamento da informação com os dados disponíveis, sem aceitar ser porta-voz de alguém que na acusação (ou, noutros casos, na acusação ou na defesa) use a comunicação social para ganhar tempo e convicção para a investigação que ainda não terá obtido resultados bastantes. E esperar-se-ia igualmente que tratasse todos os casos da justiça com o mesmo critério: seja Ricardo Salgado, seja José Sócrates, seja quem for tem o direito a essa resistente regra social, que abrange do mesmo modo as obrigações da informação e da opinião pública, que é o direito de defesa.

Se esse direito for enfraquecido, teremos o pior de todos os resultados: a corrupção será facilitada, pois a justiça claudicará, acusará erraticamente e condenará quando calha, porque lhe faltará investigação que conduza a acusações consistentes sobre factos, preferindo então usar a facilidade da coluna de jornal e substituindo as provas pelo imediatismo da sentença lavrada em ódios de estimação. Era melhor levar a sério o perigo da corrupção, que é monumental em Portugal: a transparência da vida social, a informação rigorosa e a lei equitativa podem combatê-la, mas o jornalismo serviçal de uma ideia, de uma pessoa ou de um ódio é manifestamente irrrelevante ou prejudicial contra a justiça justa.»

(Francisco Louçã. Na íntegra: aqui)

Sem comentários: