"Quem entenda que os últimos anos foram marcados por uma oposição mobilizadora, determinada e capaz, protagonizada pelo PS e liderante no Parlamento e no País, é natural que não perceba a razão de ser da candidatura de António Costa à liderança do PS.
Quem não reconhece a necessidade de interromper este ciclo no PS, enquanto é tempo para prevenir uma vitória marginal ou mesmo uma derrota nas próximas legislativas, é natural que seja refratário ao significado político da iniciativa de António Costa e ao movimento subsequente, inteiramente espontâneo, que sacudiu o partido e a sociedade portuguesa, ambos mergulhados numa crise de esperança e de confiança.
Com quem protagonizou em posição de destaque esse ciclo perdido receio que não haja mesmo qualquer esperança de vir a travar um debate no plano político, que é o plano devido. Nesses casos, é manifesta a preferência por reduzir o conflito a um duelo de egos, em que a Costa é reservado o papel de ambicioso e maquiavélico vilão e a Seguro o de mártir inconsolável e carpideiro, que passeia pelo País o seu ressentimento, com um punhal cravado na omoplata direita.
A chorosa novelização do problema político do Partido Socialista não resiste aos factos, duros como punhos, de três anos de oposição medíocre, hesitante e no geral errática e inepta. Esse é o problema. Puramente político.
O novo PS do "eu quero", "eu avisei" e dos "eus" em geral estava geneticamente condenado por um erro de análise: concordava com a teoria da direita sobre as causas da crise e, logo, com muito da sua terapêutica. Foi assim que os rombos inaugurais infligidos no contrato social europeu, também vigente em Portugal, foram acompanhados do lado do PS pela tese da "dose" de austeridade. Esta última era excessiva, asseverava o PS, com milimétrico sentido de medida.
Veio o Orçamento do Estado para 2012. O PS absteve-se. Porquê? Porque não era fácil distanciar-se de políticas com as quais no essencial, naquela fase, concordava. Era a época da discreta lua-de-mel entre o Governo e a direção do PS. Acresce que a cúpula da UGT e a "linha mole" do seu secretário-geral fizeram uma OPA sobre a direção do PS. A UGT que tinha oferecido ao Governo - no momento mais aceso da agressão aos trabalhadores por conta de outrem e aos reformados - um acordo de concertação que, até a data, nunca chegou a denunciar. Imagino que a conversão do PS à "moderação" e ao "sentido de responsabilidade" tenha abrilhantado a UGT aos olhos do Governo. Lembro-me de que na votação me levantei no plenário para denunciar esta traição ao mundo do trabalho. Terá sido outro caso que os cientistas do ego avaliarão.
Digno também de ser recordado é o episódio do pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade de certas disposições do Orçamento, designadamente a matéria dos cortes nas pensões e da supressão dos subsídios de férias e de Natal. A direção do partido foi frontalmente contrária a essa iniciativa e exerceu tal pressão sobre os deputados do PS, que houve que procurar algumas assinaturas na bancada do Bloco. Sem a firmeza intransigente de uns quantos deputados socialistas nunca teria havido intervenção do Tribunal Constitucional, que o deserto político acabaria por converter na principal esperança da oposição social ao Governo.
Entrámos, então, no ciclo da abstenção violenta, de que nunca mais saímos. Depois ,veio o acordo de regime patrocinado por Cavaco Silva. O precioso convénio amarraria o PS ao programa austeritário, a troco de eleições antecipadas, que o PS putativamente venceria, prolongando-se o convénio num bloco central capitaneado pelo líder do PS e primeiro-ministro - e ungido pelo Presidente. Mas Mário Soares - sozinho - deitou o sonho ao fundo.
Será ainda preciso recordar outro momento alto do desnorte socialista: o único entendimento que o PS considerou irrecusável com a direita, em três anos, foi o desagravamento da tributação sobre os lucros das empresas.
Este penoso elenco está muito encurtado, mas ajudará a compreender a hemorragia eleitoral do PS, de eleição para eleição, até à evidência de que não estaria à altura de libertar o País da direita mais reacionária e implacável que o Portugal democrático conheceu.
A queda do PS nas indicações de voto não é de ontem. O PS precisa de tempo e de força para poder protagonizar uma verdadeira alternativa, que rompa a gaiola de ferro do neoliberalismo europeu e doméstico. Mas isso supunha que quem está agarrado ao poder no partido aceitasse disputá-lo democraticamente, em nome do País e do interesse geral. Este PS, indiferente à agonia lenta que se autoimpôs, permanece refém de uma cultura implacável de sobrevivência, uma esperteza feita de habilidade e manha, completamente estranha à cultura do partido, mas profusamente enfeitada de princípios e valores. Esperemos que as primárias, nascidas desse caldo, sejam o instrumento da sua destruição."
Verdades como punhos, digo eu, até na denúncia de um Seguro armado em vítima.