«1. Portugal largou Cavaco como se mudasse de pele. Nenhuma transição desde o fim da ditadura gerou este alívio, quase uma libertação nacional. Marcelo tomou posse do momento, impaciente de optimismo e ecumenismo: apaziguar, unir, sorrir, curar. Descendo a minha rua, vi lágrimas no meio do povo, aos pés da Assembleia. No item empatia, foi a passagem do zero para a maioria absoluta. E aí vai Portugal para a Primavera de 2016, cheio de fé renovada.
2. Fé em cima de amnésia, toda uma tendência. Portugal erra entre aquilo que larga e aquilo a que se agarra, de qualquer das formas sem pensar muito. Um exemplo daquilo a que se agarra é a aventura épica dos séculos XV-XVI. Um exemplo do que larga é a violência ainda encoberta do Império. As navegações não deixam de ser épicas porque o Império foi violento e vice-versa, os prismas têm várias faces, mas Portugal teme que um ângulo anule o outro, então tapa um e mitifica o outro, em glorificações não apenas ultrapassadas, tendo em conta o que é hoje o conhecimento histórico, como sobretudo sem coragem. Celebrar os Descobrimentos será um suplemento de ânimo sempre à mão; já ir ao fundo do que foi o Império implica enfrentar o que os portugueses também foram/são, ou afinal não. Eis o que o discurso oficial continua a falhar, nas escolas, na política, perante os países de língua portuguesa e a vocação universal de que falou Marcelo.
3. O presente faz e refaz a História, para a frente, para trás. Seremos fontes da história futura, que resultará da forma como Cavaco for pensado agora, do que estes 10, aliás, 20, aliás, 36 anos dizem sobre Portugal. Cavaco foi ministro, primeiro-ministro e presidente com milhões de votos em múltiplas eleições. Não é uma breve pele do acaso que a história há-de ler nas calendas. Os milhões que votaram nele constituem uma grande parte deste país. Várias vezes escolheram um homem baço, sério, rígido, desconfiado, conservador, autoritário, espécie de âncora, o contrário da aventura. Na cronologia, e por feitio, Cavaco estabelece o grande arco entre a figura de Salazar e a era democrática, com a inserção na União Europeia. E, desde o 25 de Abril, simbolizará como nenhum outro governante uma limitação portuguesa. Nas fabulosas oportunidades de contacto com outros, os portugueses tentaram muito mais transformá-los ou buscar rendimento do que transformarem-se, aproveitarem para ser outros: mais. A proverbial acomodação emigrante reforça isto. Saudosa e idealmente temporária, a diáspora molda-se mais do que muda. Mas Cavaco tinha pouco de maleável e essa resistência à transformação encontrou nele um expoente, foi-se sedimentando ao longo de 36 anos. Não tanto uma pele do país, Cavaco será um fóssil, a petrificação daquilo que limita os portugueses, os impede de mudar, e portanto é preciso ler.
4. Dos manuais escolares à política, o Portugal passado cobre-se de glória. Entretanto, quem encara os buracos negros tende a ser comido pelas formigas. Depois de se doutorar em Direito Canónico, estudar Letras, traduzir, editar, intervir, ser leitor em Madrid e ter escrito alguns dos mais lancinantes poemas do século XX, Ruy Belo morreu desempregado, sem lugar numa universidade. No recente documentário, Ruy Belo, era uma vez, José Tolentino Mendonça diz que Portugal precisa de uma refundação, ecoando um apelo que vem da própria obra de Ruy Belo, e mais do que nunca me parece urgente. Portugal, que não é um fado, continua a viver com a ilusão dos eleitos, seja o Quinto Império, o Mundial de Futebol, ou o Michelin do Turismo. Não mais brando do que os violentos, matou, escravizou milhões, extraiu riquezas, e isso também tem de ser integrado na narrativa oficial. Caberá a cada um rodar o prisma o bastante para não continuarmos a ver apenas uma imagem que nos repete, e repete, e repete.
5. Apurado intérprete do momento, Marcelo viu a que ponto Cavaco, o país e o mundo deixaram de coincidir. E sendo o cristão hiperactivo que é, ao mesmo tempo empático e solitário, parece haver nele certa vocação refundadora, começando pela imagem da figura paterna de todos os portugueses. Um pater saltarico, risonho, maleável, que vai a pé para a posse, e reza ao lado de evangélicos, ortodoxos, judeus, baha’is, hindus, ismaelitas, xiitas, sunitas, sikhs, mórmones. Idealmente, a religião deveria ficar fora dos rituais de estado, mas a relevância política da cerimónia ecuménica sobrepôs-se a isso. Se, desta forma, mais gente sentiu que é parte de Portugal, e tanta gente viu que Marcelo incentiva isso, fica marcada a diferença. Não será demais sublinhar este gesto inaugural, com tanta gente à porta da Europa.
6. Mas o discurso da posse integrou os lugares comuns habituais, uns para a direita, outros para a esquerda, com a novidade de um tom caloroso, e o recuo a um saudosismo messiânico. Por exemplo, Marcelo enumerar as singularidades nacionais, e à pobre da saudade, que mal se aguenta nas canetas, suceder a “crença em milagres de Ourique”. Imagino resmas de portugueses sub-40 a pesquisarem milagres de Ourique no telemóvel. Entretanto, o orador citava já aquele “Herói Português do século XIX” segundo o qual “este Reino é obra de soldados”. Mais resmas de portugueses não estariam a ver quem seria esse herói, mas com certeza o presidente de Moçambique, saudado no parágrafo anterior, percebeu: porque o tal herói é nada menos do que Mouzinho de Albuquerque, que no século XIX capturou e desterrou Gungunhana, futuro mito da resistência para os moçambicanos. Em resumo, perante o ex-colonizado, Marcelo citou o colonizador vencedor, não aludindo ao vencido, e Portugal apareceu como reino e obra de soldados. Tudo isto, rematado pela frase “converter o Império Colonial em Comunidade de Povos e Estados independentes, prometendo a paz, o desenvolvimento e a justiça para todos”, sem uma palavra sobre a violência desse império, cujas consequências se mantêm vivas até hoje, como sabe quem conhece países da CPLP. O império passa suavemente a CPLP, nenhum sub-40 terá nada para googlar, em breve ninguém saberá do que aconteceu a não ser em calhamaços, que em breve ninguém lerá. O irónico é que, a seguir, abrindo uma longa citação de Miguel Torga, vinha a chave do problema de Portugal e deste discurso: “Nunca soubemos olhar-nos a frio.” Mas a parte que Marcelo pretendia acentuar era a sequência disso, a do povo-eleito em versão Torga: “Somos a própria inquietação encarnada. Foi ela que nos fez transpor todos os limites espaciais e conhecer todas as longitudes humanas… Temos ainda um grande papel a desempenhar no seio das nações, como a mais ecuménica de todas.” Comentário-síntese de Marcelo: “Valemos muito mais do que pensamos ou dizemos.” É mesmo? Eu tanto diria isso como o contrário, porque os portugueses oscilam entre a falta e o excesso de auto-estima. Talvez o verdadeiro desafio seja pensar essa perpétua descoincidência. Determinado a apostar todas as fichas na auto-estima, Marcelo concluiu: “O essencial, é que o nosso génio – o que nos distingue dos demais – é a indomável inquietação criadora que preside à nossa vocação ecuménica. Abraçando o mundo todo. Ela nos fez como somos. Grandes no passado. Grandes no futuro.” Não acredito nisto, não me parece caminho justo e não aplaudiria.
7. Grande não seria Portugal romper o ufanismo? De que adianta suturar, unir e rir, se por baixo a coisa continuar preta? Enquanto alguém quiser o pastiche de uma nau ou um museu para “celebrar os Descobrimentos” não teremos avançado. Portugal continuará a repetir os velhos mitos que o confortam e adiam, ora desconfiado, ora ufano, nunca mudando o ponto de vista. Não se trata de celebrar ou largar o passado, mas de o encarar a partir do que investigadores têm feito e, espera-se, continuarão a fazer (veio, aliás de um historiador, Diogo Ramada Curto, o comentário mais interessante que li ao discurso de Marcelo, incluindo mencionar a ausência de um Jaime Cortesão, ele que, exilado político no Brasil, tanto pensou a relação com o ex-Império). Incorporar esse refazer da história nas escolas, na política, na diplomacia, sem saudade e sem lamento, seria a coragem que ainda não houve.»