quinta-feira, 17 de março de 2016

E se metessem a viola no saco?

Já tinha lido que o Orçamento de Estado para 2016, ao contrário dos elaborados pela defunta comissão liquidatária formada pelo PSD e CDS, não padece de qualquer inconstitucionalidade, o que, para dizer a verdade, não chega a ser surpreendente, visto que os partidos que o aprovaram não têm pela Constituição da República o desamor que é apanágio dos partidos da direita que, há que reconhecê-lo, têm feito o favor de não o disfarçar.
Surpreendente sim é o facto de um grupo de 17 economistas terem avaliado "o rigor, a transparência e a responsabilidade orçamental do Orçamento", concluindo que, no que respeita aos citados itens, o Orçamento ora aprovado "é o melhor dos últimos anos". (fonte)
Como o PSD e o CDS têm dito cobras e lagartos do Orçamento para 2016, acusando o diploma de tudo e do seu contrário, pergunto-me perante a conclusão tirada por tão ilustres economistas se não terá também chegado a altura de os partidos da direita meterem a viola no saco.

"Um lugar indigno"

«(...)A crítica mais venenosa à posição do PSD relativamente ao Orçamento e à atual conjuntura política não chegou das bancadas da Esquerda. A crítica mais contundente chegou do CDS, quer pelos termos em que foi feita quer porque foi o "partido irmão" que a fez. Basta recordar as palavras do guru centrista António Lobo Xavier, no Congresso do fim de semana passado. Não tem dúvidas, como o PSD não parece ter, de que o Governo de Esquerda levará o país à "degradação económica e das finanças", e classifica essa previsão como uma "profecia trágica". No entanto, o CDS não pretende ficar agarrado a uma profecia e à crença de que ela se autorrealizará. "Nenhum partido pode sublinhar apenas essa profecia. Se é para isso, é um lugar miserável. Se a nossa satisfação é comprovar a profecia isso é um lugar indigno". Lobo Xavier não ficou a falar sozinho. Mas percebeu-se que o CDS ficou sozinho a falar à Direita. O PSD, pela voz do líder da bancada, Luís Montenegro, limitou-se, ontem, a sublinhar a profecia e a anunciar um lugar na primeira fila à espera que ela se autorrealize. António Costa, como José Sócrates em 2009, "dá o que tem e o que não tem para, a seguir, cobrar em dobro o que deu antes", foi repetindo Montenegro em diversas cambiantes discursivas. Profecias e pouco mais. Um "lugar indigno". Segundo o CDS
(Rafael Barbosa."Soube a pouco... e a tanto". Na íntegra: aqui)

Trabalhos de campo # 24: Sedum mucizonia




Sedum mucizonia (Ortega) Raym.-Hamet
(Clicando nas imagens, amplia)

quarta-feira, 16 de março de 2016

As opções da "garotada"*

(* Outro nome não merece um partido que se comporta da forma que aqui se comenta.)

A ler, a ler: "Passos infantiliza deputados do PSD"

«No início do debate orçamental, o PSD não se limitou a anunciar que votaria contra o Orçamento de Estado. Isso é natural, tratando-se de uma estratégia que reverte algumas das mais importantes medidas do governo de Passos Coelho. Medidas que não eram apenas uma forma de ganhar folga orçamental, faziam parte de uma estratégia falhada de tornar a nossa economia mais forte e competitiva. Decidiu que não apresentaria qualquer proposta de alteração e chumbaria todas as que fossem apresentadas.
O PSD justificou esta sua decisão com uma ideia simples: este é o orçamento da geringonça, a geringonça que se amanhe.
É aqui que reside a profunda irresponsabilidade política do PSD: este não é o orçamento da geringonça, é o Orçamento de Estado. Do Estado português. Ao decidir não apresentar propostas de alteração e chumbar tudo o que venha, independentemente do seu conteúdo, o PSD deixou parte dos portugueses sem representação parlamentar.
A coisa é mais ridícula do que isto: o PSD vota contra o cumprimento de compromissos internacionais firmados por Pedro Passos Coelho, explicando ao país e ao mundo que a sua palavra apenas tem valor se continuar no Governo. Reprovar o que se defende porque se discorda de quem o aplica ultrapassa a infantilidade política. É puro niilismo político.
A posição dos deputados do PSD, que aceitaram fazer de jarras no debate do Orçamento, não cumprindo sequer os seus deveres de oposição (apresentar propostas que consideram justas), é a consequência lógica da estratégia da birra: quem, estando contra um Governo, não aceita que é oposição, fica com muito pouco para fazer. A estratégia é infantil mas não é absurda. É a única que permite a Pedro Passos Coelho, agarrado que está a um estatuto que perdeu, sobreviver na liderança do PSD. Mas para o partido é suicida. Ainda mais quando o CDS começará, com a nova liderança, a fazer uma oposição que não ficou presa no ressentimento do passado.»
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário de 15 / Março /2016. Fonte)

domingo, 13 de março de 2016

A ler, a ler: "A pele de Cavaco e os milagres de Marcelo"


«1. Portugal largou Cavaco como se mudasse de pele. Nenhuma transição desde o fim da ditadura gerou este alívio, quase uma libertação nacional. Marcelo tomou posse do momento, impaciente de optimismo e ecumenismo: apaziguar, unir, sorrir, curar. Descendo a minha rua, vi lágrimas no meio do povo, aos pés da Assembleia. No item empatia, foi a passagem do zero para a maioria absoluta. E aí vai Portugal para a Primavera de 2016, cheio de fé renovada.

2. Fé em cima de amnésia, toda uma tendência. Portugal erra entre aquilo que larga e aquilo a que se agarra, de qualquer das formas sem pensar muito. Um exemplo daquilo a que se agarra é a aventura épica dos séculos XV-XVI. Um exemplo do que larga é a violência ainda encoberta do Império. As navegações não deixam de ser épicas porque o Império foi violento e vice-versa, os prismas têm várias faces, mas Portugal teme que um ângulo anule o outro, então tapa um e mitifica o outro, em glorificações não apenas ultrapassadas, tendo em conta o que é hoje o conhecimento histórico, como sobretudo sem coragem. Celebrar os Descobrimentos será um suplemento de ânimo sempre à mão; já ir ao fundo do que foi o Império implica enfrentar o que os portugueses também foram/são, ou afinal não. Eis o que o discurso oficial continua a falhar, nas escolas, na política, perante os países de língua portuguesa e a vocação universal de que falou Marcelo.

3. O presente faz e refaz a História, para a frente, para trás. Seremos fontes da história futura, que resultará da forma como Cavaco for pensado agora, do que estes 10, aliás, 20, aliás, 36 anos dizem sobre Portugal. Cavaco foi ministro, primeiro-ministro e presidente com milhões de votos em múltiplas eleições. Não é uma breve pele do acaso que a história há-de ler nas calendas. Os milhões que votaram nele constituem uma grande parte deste país. Várias vezes escolheram um homem baço, sério, rígido, desconfiado, conservador, autoritário, espécie de âncora, o contrário da aventura. Na cronologia, e por feitio, Cavaco estabelece o grande arco entre a figura de Salazar e a era democrática, com a inserção na União Europeia. E, desde o 25 de Abril, simbolizará como nenhum outro governante uma limitação portuguesa. Nas fabulosas oportunidades de contacto com outros, os portugueses tentaram muito mais transformá-los ou buscar rendimento do que transformarem-se, aproveitarem para ser outros: mais. A proverbial acomodação emigrante reforça isto. Saudosa e idealmente temporária, a diáspora molda-se mais do que muda. Mas Cavaco tinha pouco de maleável e essa resistência à transformação encontrou nele um expoente, foi-se sedimentando ao longo de 36 anos. Não tanto uma pele do país, Cavaco será um fóssil, a petrificação daquilo que limita os portugueses, os impede de mudar, e portanto é preciso ler.

4. Dos manuais escolares à política, o Portugal passado cobre-se de glória. Entretanto, quem encara os buracos negros tende a ser comido pelas formigas. Depois de se doutorar em Direito Canónico, estudar Letras, traduzir, editar, intervir, ser leitor em Madrid e ter escrito alguns dos mais lancinantes poemas do século XX, Ruy Belo morreu desempregado, sem lugar numa universidade. No recente documentário, Ruy Belo, era uma vez, José Tolentino Mendonça diz que Portugal precisa de uma refundação, ecoando um apelo que vem da própria obra de Ruy Belo, e mais do que nunca me parece urgente. Portugal, que não é um fado, continua a viver com a ilusão dos eleitos, seja o Quinto Império, o Mundial de Futebol, ou o Michelin do Turismo. Não mais brando do que os violentos, matou, escravizou milhões, extraiu riquezas, e isso também tem de ser integrado na narrativa oficial. Caberá a cada um rodar o prisma o bastante para não continuarmos a ver apenas uma imagem que nos repete, e repete, e repete.

5. Apurado intérprete do momento, Marcelo viu a que ponto Cavaco, o país e o mundo deixaram de coincidir. E sendo o cristão hiperactivo que é, ao mesmo tempo empático e solitário, parece haver nele certa vocação refundadora, começando pela imagem da figura paterna de todos os portugueses. Um pater saltarico, risonho, maleável, que vai a pé para a posse, e reza ao lado de evangélicos, ortodoxos, judeus, baha’is, hindus, ismaelitas, xiitas, sunitas, sikhs, mórmones. Idealmente, a religião deveria ficar fora dos rituais de estado, mas a relevância política da cerimónia ecuménica sobrepôs-se a isso. Se, desta forma, mais gente sentiu que é parte de Portugal, e tanta gente viu que Marcelo incentiva isso, fica marcada a diferença. Não será demais sublinhar este gesto inaugural, com tanta gente à porta da Europa.

6. Mas o discurso da posse integrou os lugares comuns habituais, uns para a direita, outros para a esquerda, com a novidade de um tom caloroso, e o recuo a um saudosismo messiânico. Por exemplo, Marcelo enumerar as singularidades nacionais, e à pobre da saudade, que mal se aguenta nas canetas, suceder a “crença em milagres de Ourique”. Imagino resmas de portugueses sub-40 a pesquisarem milagres de Ourique no telemóvel. Entretanto, o orador citava já aquele “Herói Português do século XIX” segundo o qual “este Reino é obra de soldados”. Mais resmas de portugueses não estariam a ver quem seria esse herói, mas com certeza o presidente de Moçambique, saudado no parágrafo anterior, percebeu: porque o tal herói é nada menos do que Mouzinho de Albuquerque, que no século XIX capturou e desterrou Gungunhana, futuro mito da resistência para os moçambicanos. Em resumo, perante o ex-colonizado, Marcelo citou o colonizador vencedor, não aludindo ao vencido, e Portugal apareceu como reino e obra de soldados. Tudo isto, rematado pela frase “converter o Império Colonial em Comunidade de Povos e Estados independentes, prometendo a paz, o desenvolvimento e a justiça para todos”, sem uma palavra sobre a violência desse império, cujas consequências se mantêm vivas até hoje, como sabe quem conhece países da CPLP. O império passa suavemente a CPLP, nenhum sub-40 terá nada para googlar, em breve ninguém saberá do que aconteceu a não ser em calhamaços, que em breve ninguém lerá. O irónico é que, a seguir, abrindo uma longa citação de Miguel Torga, vinha a chave do problema de Portugal e deste discurso: “Nunca soubemos olhar-nos a frio.” Mas a parte que Marcelo pretendia acentuar era a sequência disso, a do povo-eleito em versão Torga: “Somos a própria inquietação encarnada. Foi ela que nos fez transpor todos os limites espaciais e conhecer todas as longitudes humanas… Temos ainda um grande papel a desempenhar no seio das nações, como a mais ecuménica de todas.” Comentário-síntese de Marcelo: “Valemos muito mais do que pensamos ou dizemos.” É mesmo? Eu tanto diria isso como o contrário, porque os portugueses oscilam entre a falta e o excesso de auto-estima. Talvez o verdadeiro desafio seja pensar essa perpétua descoincidência. Determinado a apostar todas as fichas na auto-estima, Marcelo concluiu: “O essencial, é que o nosso génio – o que nos distingue dos demais – é a indomável inquietação criadora que preside à nossa vocação ecuménica. Abraçando o mundo todo. Ela nos fez como somos. Grandes no passado. Grandes no futuro.” Não acredito nisto, não me parece caminho justo e não aplaudiria.

7. Grande não seria Portugal romper o ufanismo? De que adianta suturar, unir e rir, se por baixo a coisa continuar preta? Enquanto alguém quiser o pastiche de uma nau ou um museu para “celebrar os Descobrimentos” não teremos avançado. Portugal continuará a repetir os velhos mitos que o confortam e adiam, ora desconfiado, ora ufano, nunca mudando o ponto de vista. Não se trata de celebrar ou largar o passado, mas de o encarar a partir do que investigadores têm feito e, espera-se, continuarão a fazer (veio, aliás de um historiador, Diogo Ramada Curto, o comentário mais interessante que li ao discurso de Marcelo, incluindo mencionar a ausência de um Jaime Cortesão, ele que, exilado político no Brasil, tanto pensou a relação com o ex-Império). Incorporar esse refazer da história nas escolas, na política, na diplomacia, sem saudade e sem lamento, seria a coragem que ainda não houve.»
(ALEXANDRA LUCAS COELHO)
(imagem e texto: aqui)

sexta-feira, 4 de março de 2016

Ajustamento ? Qual ajustamento?

«O anúncio de que o Novo Banco registou prejuízos de €980,6 milhões em 2015 e que provavelmente só terá lucros em 2017 é estarrecedor. Se um banco, que nasceu com o conta-quilómetros a zero, como anunciou o governador do Banco de Portugal; se um banco que viu o seu passivo expurgado dos ativos tóxicos; se um banco que arrancou com um capital inicial de €4900 milhões, dos quais 3900 milhões garantidos pelos contribuintes; se um banco que no final de 2015 viu retirados das suas responsabilidades mais €1900 milhões de cinco emissões de dívida sénior, que passaram para o BES “mau”; se um banco que tem um presidente emprestado por uma das maiores instituições financeiras europeias, o Lloyds Bank; pois se um banco com todas estas condições, estes apoios e estas redes de proteção mesmo assim consegue apresentar prejuízos de quase mil milhões de euros, anunciados quase com desfastio e como se fosse normal pelo presidente Stock da Cunha, então o problema é muito mais fundo do que se pensava.

E o problema não é apenas o Novo Banco mas, como começa a ser ululantemente óbvio, o sistema financeiro português, onde quatro dos cinco maiores bancos estão a viver situações muito difíceis. (...)

O descalabro da banca portuguesa é o reflexo do descalabro da economia nacional após quatro anos de austeridade e sequelas profundas sobre o tecido produtivo. Perante este quadro, qualquer cidadão se interroga como foi possível os bancos portugueses terem passado por sucessivos testes de stresse conduzidos pelas autoridades europeias, saindo sempre aprovados; e como foi possível o Banco de Portugal garantir sucessivamente que o nosso sistema financeiro era sólido e seguro.

Perante este quadro, qualquer cidadão, que já paga mais de €2500 milhões pelo caso de polícia que foi o BPN, que já encaixou perdas de 2100 milhões com o Banif e que vai pagar provavelmente esses dois valores somados pela resolução do BES e pela venda do Novo Banco, qualquer cidadão, dizia, se interroga sobre quando chegará ao fim este filme de terror. E se ninguém — Juncker, Draghi, Constâncio, Carlos Costa, Passos, Maria Luís — cora de vergonha.

Uma coisa é certa: o descalabro da banca portuguesa é o reflexo do descalabro da economia nacional após quatro anos de austeridade e sequelas profundas sobre o tecido produtivo. E a prova, mais uma, de como o ajustamento foi errado tecnicamente e mal conduzido politicamente.»

(Nicolau Santos: "Banca Nacional: e ninguém cora de vergonha?" in Expresso de 27/02/2016. Fonte, onde o texto pode ser lido na íntegra. Destaque meu.)