sábado, 7 de outubro de 2017

"Entrou pela saída de emergência, saiu pela porta dos fundos"

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De facto, ele [Passos Coelho] recebeu o país de rastos, com um défice de 10,5% do PIB. Mas recebeu porque quis: ele queria ser primeiro-ministro e Paulo Portas queria ser ministro dos Estrangeiros. E, por isso, aliaram-se à extrema-esquerda parlamentar para chumbar o PEC IV - que já havia sido aprovado em Bruxelas e Berlim, e que talvez tivesse evitado o resgate, como o evitou em Espanha. Ao fazê-lo, Passos e Portas sabiam várias coisas que iriam fatalmente acontecer: o Governo do PS demitir-se-ia; mas até novas eleições teria de chamar a troika e negociar em condições de brutal dureza, que inevitavelmente lhe custariam a seguir a derrrota nas eleições. Tudo aconteceu como previsto, sendo de notar que não é verdade que o PSD tenha tido que executar um programa ajustado unicamente entre o Governo do PS e a troika: certamente se lembram do dr. Catroga a representar Passos Coelho nas negociações e a gabar-se que, no essencial, o programa da troika era o do PSD. E, depois, todos nos lembramos de Passos a dizer que iria ainda além do programa. Se tudo fez para governar naquelas circunstâncias, que legitimidade tem para se queixar da herança recebida?
(...)
Talvez a governação de Passos tenha sido corajosa e certamente que foi impopular. O problema é que estava errada, como o próprio FMI viria a reconhecer posteriormente.
(...)
[Pois] se o défice desceu de facto, a dívida continuou sempre a subir e, no final dos quatro anos, tinhamos vendido as telecomunicações, os correios, a TAP, a navegação aérea, os portos, e o único banco que restava português e vivo, embora arruinado, era a Caixa Geral de Depósitos (...)"
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(...) a verdade é que Passos Coelho propunha-se continuar por mais quatro anos a mesma política de cortes cegos, horizontais e dirigidos às pessoas e não aos organismos a mais. O mérito de Mário Centeno foi o de ter apostado que aliviando o cinto, devolvendo o dinheiro às pessoas ao ritmo possível, elas iriam gastá-lo de imediato e isso poria a economia a crescer e as receitas fiscais a subir num círculo virtuoso que era o oposto do que fora a crença e a obra funesta de Vítor Gaspar, Maria Luís Albuquerque, António Borges e Pedro Passos Coelho.
"Não há que negar que a recuperação económica tem sido muito ajudada por factores externos, como o turismo que o Daesh desviou para aqui, as compras de dívida pública pelo BCE e a própria retoma, ainda que moderada, no espaço europeu [*]. Porém, duvido que se Passos estivesse a chefiar agora o Governo iria ter capacidade para perceber que era hora de apostar e ir a jogo. A prova disso é a sua célebre promessa, feita quase em jeito de desejo, de que iríamos ter o diabo de volta ... em Setembro do ano passado. Até ao fim (...) foi teimoso, obstinado até no erro, e incapaz de ver diferente do que algumas pretensas verdades imutáveis que lhe enfiaram à pressa na cabeça para que ele governasse Portugal com isso. Como se veria finalmente nas autárquicas, Pedro Passos Coelho tinha ficado irremediavelmente para trás (...)Entrou pela saída de emergência, saiu pela porta dos fundos (...)»
(Miguel Sousa Tavares: "Um homem e o seu destino". In "Expresso" de hoje, edição impressa)

A transcrição é algo longa, mas justifica-se tendo em conta a falta de memória que afecta por aí muito boa gente e outra não assim tão boa.
[*] Uma pequena nota apenas para recordar que qualquer dos factores externos enunciados por Miguel Sousa Tavares e cuja relevância se não nega,  surgiram muito antes de o actual Governo ter entrado em funções. Todos eles já existiam ao tempo da governação Passos/Portas.