«O Presidente da República (PR), Cavaco Silva, enfrenta neste momento a decisão provavelmente mais difícil do seu decénio no Palácio de Belém. Como cidadão português, prof. de Direito Público e seu eleitor, sinto o dever de dar o meu modesto contributo para o equacionamento dessa decisão. Na certeza, porém, de que a decisão é da sua exclusiva competência; e não pode nem deve ser objeto de quaisquer pressões ou ameaças. A meu ver, Cavaco Silva tem de resolver cinco dilemas.
1. Deve o Presidente decidir livremente, sondando apenas a sua consciência, ou de acordo com os princípios e normas da Constituição da República (CR)? Quaisquer que sejam as suas opiniões, preferências e intuições pessoais, o PR tem sempre de decidir de harmonia com a letra e com o espírito da Constituição. Só em monarquia absoluta ou em ditadura é que o Chefe decide exclusivamente segundo a sua vontade. Num regime constitucional, o PR é o mais alto órgão de aplicação da CR, a qual, ao tomar posse, jura “cumprir e fazer cumprir”. Ele é, pois, o primeiro executor e garante da Constituição.
2. É possível manter em funções de mera gestão, por quatro meses ou mais, um Governo cujo programa foi rejeitado por maioria absoluta dos deputados? Entendo que não, porque a rejeição do programa na Assembleia da República (AR) é considerada pela CR como “demissão” do Governo. O princípio da continuidade do Estado exige, pois, dada a limitação de competência dos governos de gestão, a formação de outro Executivo. Em Monarquia diz-se: “rei morto, rei posto”; em República, a fórmula equivalente é: “governo demitido, novo governo”.
3. Pode ou não o PR optar por formar um governo de iniciativa presidencial? Poder, pode, em minha opinião. Mas como Cavaco Silva sempre quis afastar essa hipótese, só ele sabe se tem condições para mudar de orientação.
4. Deve o Presidente indigitar, nomear e empossar António Costa sem reservas ou exigências, ou pode pôr- -lhe determinadas condições? Por mim, acho que, demitido pela AR o governo da maior força política, e assinados, pelo segundo partido mais votado, os acordos que se conhecem com os restantes partidos da esquerda parlamentar, o Presidente deve aceitar o governo do PS nos termos que lhe são propostos. O “perigo do PCP” existiu, a meu ver, em 1975, mas foi sobretudo devido aos fortes apoios recebidos do bloco soviético. Não havendo hoje URSS nem Pacto de Varsóvia, tendo terminado em 25 de Novembro de 1975 a ação revolucionária de uma parte do MFA (que aliás deixou de existir) – e, sobretudo, tendo em conta o exemplar comportamento democrático, desde 1976, das nossas Forças Armadas e de todos os partidos políticos com assento parlamentar –, não é legítimo, e podia ser contraproducente, excluir quem quer que seja do acesso ao Governo ou a uma maioria parlamentar de apoio. A política faz-se no presente e a olhar para o futuro, e não com base em retrospetivas ou traumas. Ter presentes as lições da História é bom; mas é errado pensar que a História se repete sempre, e da mesma maneira. O futuro não está escrito em parte nenhuma.
Por outro lado, o PR não tem qualquer base constitucional para pôr condições ideológicas, políticas ou programáticas a um partido político que lhe apresente uma proposta de governo com apoio parlamentar maioritário: tinha-a quando os governos nasciam da confiança política do Presidente, e podiam morrer por falta dela; desde 1982, porém, os governos só são politicamente responsáveis perante o Parlamento.
5. Num sistema semipresidencialista, como o nosso, o PR não deveria poder recusar-se a nomear um Governo de cujo programa, ou de cuja base parlamentar de apoio, discorde profundamente? Penso que não, pelas mesmas razões enunciadas em 4). Cabe ao Presidente “propor” governos à AR, mas só este é que pode “decidir” a quem se dá em definitivo o direito de governar. É assim em todos os países onde o Governo responde perante o Parlamento.
(...)
(Diogo Freitas do Amaral (na imagem); "Os cinco dilemas do Presidente". Na íntegra: aqui)
(Sobre a justeza do escrito de Freitas do Amaral não tenho a mínima dúvida. Não tenho, porém, a certeza sobre se o destinatário ainda conserva alguma réstia de lucidez e de sensatez para agir em conformidade. Olhando para o seu comportamento nos últimos tempos, temo bem que não.)
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