segunda-feira, 19 de maio de 2008

O estranho "caso" dos certificados de aforro

No passado domingo, o Diário de Notícias dava conta que "o Governo está a tentar travar o fluxo significativo de saídas dos certificados de aforro observadas desde que foram feitas alterações nas taxas de juro em Janeiro", adiantando que "nas últimas semanas, os detentores deste produto de poupança receberam em casa cartas do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP) - entidade pública responsável pela emissão e gestão dos stocks de Certificados - a descrever as mudanças efectuadas pelo Governo e a sublinhar as vantagens deste produto face à concorrência. "
Segundo o mesmo jornal, a diferença entre o montante dos resgates de certificados de aforro e o montante das novas subscrições, apurada no final de Abril, cifrar-se-ia já em 422 milhões de euros, montante que, pelos vistos já preocupa o Governo, e que revela, de facto, uma perda de confiança no produto, perda de confiança que, adiante-se desde já, é plenamente justificada.
Convém, a propósito, lembrar que o Governo, para além de criar uma nova Série de certificados, a Série C, (como era seu pleníssimo direito) atreveu-se também a alterar, sem mais aquelas, a fórmula de cálculo dos juros dos certificados das Séries A e B, através da Portaria n.º 73-B/2008, de 23 de Janeiro que estabeleceu que "a taxa de juro base dos certificados de aforro da série A e da série B passa a ser calculada através de 0,60 × TBA (taxa base anual)", tornando os certificados de aforro menos atractivos, pois o anterior factor de multiplicação (0,80) era bem mais favorável para os aforradores, como é evidente.
Tem-se discutido se esta alteração é ou não legal e as opiniões não são unânimes. Pessoalmente, e sem um estudo mais aprofundado, não me julgo habilitado a pronunciar-me, para já e em definitivo, sobre a questão, embora me incline para a ilegalidade da alteração, considerando que o Governo actuou com violação do princípio da boa fé (princípio que, embora não expressamente consignado na lei, aflora em diversas disposições legais, sendo considerado, unanimemente, pela doutrina e pela jurisprudência como um princípio geral enformador do nosso sistema jurídico) e com desrespeito pelo disposto no artigo 406.º do Código Civil, que determina que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, só podendo ser modificados por mútuo consentimento dos contratantes. "Pacta sunt servanda" é princípio que já vem do direito romano.
Poderá dizer-se que, tendo o Governo o poder de legislar, nada poderia impedir que o Governo estabelecesse novas regras, com revogação de normas anteriores. Seria algo deste tipo o que teria ocorrido neste caso.
Sem prejuízo de um estudo mais atento, como já ficou dito, importa sublinhar aqui o seguinte: A República Portuguesa é, nos termos da Constituição, um Estado de Direito, o que significa que o legislador (seja qual for o órgão legislativo) não pode agir livremente, mas sim e apenas com respeito pelos princípios gerais do ordenamento jurídico. De outra forma entraríamos no domínio do puro arbítrio, conceito que é a própria negação do direito e, consequentemente, do estado de direito. Não se estranhará, em face do que fica dito, que se considere, provisoriamente, e em conclusão, que a alteração da fórmula de cálculo da taxa de juros, feita unilateralmente e com violação dos citados princípios gerais, é ilegal, por inconstitucional.
Pense-se, no entanto, o que se pensar sobre a questão da legalidade, uma coisa é certa: Ao actuar, como actuou, através de um acto do Governo, o Estado Português não se comportou com a lisura que seria de esperar de uma pessoa de bem. Antes, pelo contrário. Na verdade, estando em causa uma relação jurídica de direito privado, em que o Estado intervém destituído do "jus imperii", e como tal em posição jurídica idêntica à dos outros contratantes, seria expectável que o Estado não se aproveitasse do mesmo jus imperii , para, unilateralmente, alterar os contratos aceites pelos investidores que acorreram à subscrição, respondendo às propostas apresentadas publicamente pelo Estado.
Face à actuação de um Estado desrespeitador dos compromissos validamente aceites, é compreensível que os aforradores tenham perdido a confiança em quem traiu essa mesma confiança e é legítimo que qualquer investidor se interrogue: Se desta vez, o Estado procedeu desta forma, quem impedirá que o mesmo procedimento venha a ter lugar no futuro?
A dúvida instalou-se, a dúvida é geradora de incerteza e esta é inimiga da confiança. Não me surpreenderia, por isso, se os novos apelos à subscrição vierem a cair em saco roto.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei.Mas após a nossa conversa e este teu comentário tens que investigar se a medida foi ou não ilegal ou anticonstitucional. Parabéns e continua. Um abraço.

Zé-Tó