É do domínio da evidência que o fenónemo da corrupção, que não é de hoje, afecta a transversalmente a sociedade portuguesa e que as notícias sobre ela só vêm a lume, sobretudo, quando, nas redes que a justiça tece, é apanhado alguém que, por uma razão ou outra, goza de notoriedade pública.
Hoje, como é sabido, o fenónemo está na ordem do dia graças ao surgimento das notícias sobre o caso "Face Oculta". É, nessa sequência, que também aqui se dedicam algumas notas ao tema, para salientar:
- I. A corrupção é uma pandemia que se desenvolve no nosso país, porque encontra um ambiente propício, não suscitando grande repúdio por parte da maioria da população. A aceitação social generalizada do compadrio e da "cunha", bem como a eleição de autarcas a contas com a justiça, mesmo com condenações já proferidas, são suficiente prova disso.
- II. O fenónemo, já o disse, é transversal na sociedade portuguesa e não afecta apenas, como alguns pretendem, o sector público. Basta atentar nos casos ultimamente mais falados para tal se concluir. Mesmo no caso "Face Oculta", a verdade é que maioria das pessoas e das empresas a que elas estão ligadas pertence ao sector privado. Senão vejamos: entre as pessoas suspeitas, não figura nenhum político a exercer cargos públicos; as empresas citadas são todas, sem excepção, empresas privadas, que dispõem de administrações próprias designadas pelos seus accionistas. De facto, com excepção da REN, mesmo nas empresas em cujo capital existe participação do Estado, tal participação é minoritária e, seja ou não qualificada, o facto é que, no caso, tal circunstância é inteiramente irrelevante, porque as pessoas sobre as quais incidem as suspeitas ocupam lugares que dependem de nomeações em que o Estado nem é ouvido, nem achado, pois são, nuns casos, quadros intermédios e, noutros, nem isso. O caso da REN é, sem dúvida, diferente, mas, como se costuma dizer, uma andorinha não faz a Primavera e convém não confundir a excepção com a regra. Por isso, se me afigura ilegítimo sentenciar, tal como o faz o Prof. Marcelo, com a ligeireza que o caracteriza, que “Para o Governo, o desgaste de um processo como este é maior do que no caso Freeport”. A sentença de Marcelo é, aliás, contrariada pelos factos: a última sondagem conhecida, realizada já depois do surgimento das notícias sobre o caso, revela que o PS sobe nas intenções de voto e o PSD desce. Ser contraditado pelos factos sucede, com frequência, a quem toma os seus anseios pela realidade. É o caso.
- III. A corrupção, para além de ser eticamente reprovável, é um fenómeno que afecta o desenvolvimento económico das sociedades em que se instala, como é frequentemente salientado. O seu combate justifica-se, pois, quer do ponto de vista da moral social, quer do ponto de vista económico e, por isso, tudo o que se faça no sentido da sua erradicação, merece aplauso, a começar por novas iniciativas legislativas. Convém, porém, não ter grandes ilusões sobre a eficácia de novas medidas legislativas, pois, se bem entendo a questão, não é por falta de normas que o combate à corrupção não tem tido o êxito desejável. Digo isto sem pôr em dúvida as boas intenções de quem ciclicamente reclama novas medidas, sempre que algum caso ganha a atenção da comunicação social.
- IV. O inêxito até agora verificado, tem mais a ver, julgo eu, com a falta de sentido cívico que impera na sociedade portuguesa e com a ineficácia dos organismos a quem incumbe a luta contra a criminalidade. Sendo assim, a luta contra a corrupção é uma tarefa em que todos se devem empenhar: os poderes públicos, sem dúvida, mas também os cidadãos e as organizações da sociedade civil, começando pelos partidos políticos aos quais é exigível uma maior seriedade no tratamento do tema. Exigir, por exemplo, ao primeiro-ministro esclarecimentos sobre as conversas com Armando Vara, escutadas no âmbito da citada operação "Face Oculta" (quando é suposto que nem o próprio saiba quais sejam essas conversas) não vai, seguramente, nesse sentido. E digo o mesmo relativamente à ideia da criação do novo tipo legal de crime do "enriquecimento ilícito", pois não vejo como é possível compatibilizá-lo com o respeito pelo princípio basilar do direito processual criminal da presunção de inocência.
- V. À justiça exige-se, antes de mais, celeridade na investigação deste tipo de crime, dando seguimento, aliás, às prioridades definidas pela Assembleia da República, em matéria de política criminal e o cumprimento rigoroso das suas obrigações, incluindo o dever de sigilo. A violação do segredo de justiça pode dar bons títulos de jornal, mas não contribui, por certo, para credibilizar a justiça. Ora, quer a falta de celeridade, quer de credibilidade da justiça são, nos dias de hoje, problemas maiores e que afectam seriamente a sua eficácia. Também no âmbito do combate à corrupção, como não pode deixar de ser.
1 comentário:
Uma excelente reflexão, caro amigo.
Concordo plenamente quando afirma, a dado passo, que a ausência de espírito cívico é uma notável alavanca para estas coisas da corrupção e afins. Que, seria bom que se dissesse (e você também o diz), também campeia na socidade civil, embora a gente goste sempre de salivar os dentes quando a coisa mete gente da dita alta roda!
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