sábado, 14 de novembro de 2009

Deixemo-nos de lérias

O tema da criminalização do "enriquecimento ilícito" está de volta e em força e não é difícil perceber porquê.
Retomo, por isso, também aqui o assunto para, antes de mais, salientar que as minhas reticências em relação à criação do novo tipo legal de crime se prendem com o facto de me repugnar o afastamento do princípio da presunção de inocência (princípio basilar do direito processual criminal moderno e verdadeira conquista civilizacional) .
É verdade que, contrariamente, ao que eu entendo, há quem defenda que o crime de "enriquecimento ilícito" não implica, forçosamente, a negação daquele princípio, embora até hoje ainda não tenha visto, pessoalmente, nenhuma formulação que a não contemple.
A última de que tive conhecimento é da autoria do ilustre advogado Magalhães e Silva publicada no jornal i que nos apresenta a seguinte formulação (que não andará longe de outras já divulgadas de uma ou outra forma): "é punido com a pena de x anos de prisão o agente público que adquirir bens em manifesta desconformidade com os rendimentos fiscalmente declarados e sem que se conheça outro (?) meio de aquisição lícito. E caberá ao Ministério Público fazer prova de tudo (?): (i) dos bens adquiridos e seu valor, (ii) dos rendimentos fiscalmente declarados, (iii) da manifesta desconformidade entre uns e outros, (iv) de não ser conhecido outro (?) meio de aquisição lícito. O acusado terá o ónus de provar que, afinal, existe uma causa lícita de aquisição que não era conhecida - herança, bolsa, totoloto, euromilhões".
O autor considera que não há, nesta tipificação, qualquer inversão do ónus da prova e até tem a gentileza de nos esclarecer em que consiste tal ónus: "a acusação prova o ilícito e a culpa, o acusado os factos que possam excluir uma coisa ou outra".
Quanto a este ponto qualquer jurista está de acordo. Não é, porém, necessário ser-se muito arguto, para se concluir que o ilustre causídico tropeça numa contradição que se pode enunciar como segue: De acordo com a citada formulação, o Ministério Público terá que provar quais os bens adquiridos, os rendimentos fiscalmente declarados, a desconformidade entre uns e outros, mas já não terá de provar o ilícito, como lhe cumpria, de acordo com a repartição do ónus da prova. Em substituição da prova do ilícito, a formulação contenta-se com a prova "de não ser conhecido outro (?)* meio de aquisição lícito", o que está muito longe de ser a mesma coisa. Ao acusado a quem, de acordo com as regras do ónus da prova, apenas caberia provar os factos que excluiriam a ilicitude ou a culpa, é exigido bem mais, pois terá, ele sim, que provar que o seu enriquecimento é lícito. Ou seja, nestes termos, não é o Ministério Público que tem que provar a ilicitude do enriquecimento, é sobre o acusado que passa a impender o ónus da prova da licitude e não apenas o ónus de provar os factos que excluiriam a ilicitude. Como é evidente, o acusado, na citada formulação, só tem que provar a licitude, porque se parte do pressuposto de que não é inocente, ou, por outras palavras, que é culpado. E lá se vai por água abaixo, como é óbvio, o princípio da presunção da inocência.
Passo de largo duas outras questões:
i) a de saber em que é que consiste o não conhecimento de um facto e como é que o Ministério Público vai fazer a prova desse não conhecimento. As dificuldades resultantes desta formulação fazem-me supor que o tipo legal de crime, com tal configuração, se arrisca a transformar-se num saco roto que facilmente vai deixar passar pelas malhas qualquer acusado;
ii) e a de saber se uma tal norma não sofrerá de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, ao incluir, apenas, na sua previsão, os agentes públicos.
E direi em conclusão:
São de louvar todos os esforços que se façam no sentido de limitar ou acabar com o fenómeno da corrupção. Não acompanharei, no entanto, qualquer medida que ponha em causa princípios fundamentais do estado de direito. Na formulação em causa ou noutras de teor idêntico ou semelhante, é, a meu ver, o que está em causa.
Convém, pois, que, nesta matéria, sejamos claros e que nos deixemo-nos de lérias: regressar aos tempos da inquisição? Eu não irei por aí!
*(Os sinais (?) insertos no interior das citações são todos da minha autoria)

6 comentários:

Anónimo disse...

Acabemos com joguinhos jurídicos e vamos a direito.

Mantenhamos o princípio existente do ónus da prova.
Mais crimes para quê?

Se todos querem acabar coma corrupção eis, a chave:

1ª : ACABE-SE COM A LENTIDÃO DA JUSTIÇA;
Consequência: julgado e condenado ou absolvido em 2 tempos, traz logo a malta de rédea curta e dá o exemplo.

2ª - Em simultâneo, DETERMINE-SE QUE TUDO QUE É DESCONFORME COM A LEI É NULO e vai abaixo sem dó nem piedade;
Consequência: acabam-se em 2 tempos os projectos aprovados nas Câmaras, pois que se vai abaixo mais tarde e não havendo escapadela, ninguém arrisca dar dinheiro para aprovar o que quer que seja contra a lei.

3ª - TODA A DOCUMENTAÇÃO E CONTRATOS SÃO PÚBLICOS E DE FÁCIL ACESSO e quem, orgão ou titular, que tente sequer encobrir perde o lugar ou é dissolvido.
Consequência: A opacidade desaparece, o joguinho do segredo da "alma do negócio" vai ao ar e não se andará a tentar durante meses ou anos saber o que foi feito porque de imediato "tudo se topa" e ninguém se atreverá a resistir porque já sabe o que de imediato sucede, suspensão e posterior demissão ...

4ª PAGUE-SE BEM A QUEM CUIDA DA "RES PUBLICA" para termos lá sempre os melhores.
A consequência é obvia: esses videirinhos e macacões vão andar de roda e bem longe desses lugares.

5ª O CORRUPTOR PODE FICAR ISENTO DE PENA.
Consequència: Nos casos mais difíceis de prova, esta medida ajuda a que nenhum funcionário se sinta seguro perante quem se deixou corromper.

Concluindo: O caso dos contentores da Alcântara nunca sucederia como um caso ilegal até porque a dificuldfade em encontrar os documentos e analisá-los a tempo e horas e as consequências incluindo as indemnizações que os responsáveis teriam de pagar, rapidamente, logo desmotivariam certos e pecaminosos intentos.
Certos prédios que se controem e só depois de prontinhos é que se descobre que são ilegais, pura e simplesmente deixavam de ser construídos as somas da corrupção não seriam pagas.
Isso de nem os vereadores das Câmaras terem acesso ao teor de certos contratos ou decisões, é incrível e inaceitável e logo tudo ficava transparente como a água limpinha...

Não podem é querer ausência de corrupção no estado actual das coisas: nada funciona.
Vamos ao essencial e deixem-se dessas tretas da tipologia do tal crime...
(Abade de Coelheiros)

Anónimo disse...

Eu também alinho sem dúvidas neste caminho.
Não esqueçamos que esta controvérsia ultrapassa claramente a visão meramente jurídica. Temos que olhar o mundo em que vivemos e os alçapões nele escondidos como as off shores, holdings, grupos em teia, circuitos extra bancários, etc.
Ser mais papista que o papa pode permitir a deslocação de capitais assustados com ameaças para além do que comporta o tradicional e claramente definido estado de direito. Purismo sim, mas só após desminar o terreno...
Zé Mário

Anónimo disse...

Não vou comentar, não.Façamos uma pausa.
Trago um poema de Eugénio de Andrade,pensando em alguém que vive a mãe, no momento,com tristeza e muita angústia.

POEMA À MÃE

No mais fundo de mim
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha- queres ouvir-me?-
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto conta o coração
rosa tão brancas
como as que tens na moldura;
...........................
Mas- tu sabes-a noite é enorme´
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite.Eu vou com as aves.

Beijos-GINGINHA

Anónimo disse...

Queridos Abade de Coelheiros e José Maria:

Vocês são uns santos ingénuos.

Como querem vocês moralizar este País, se vem hoje no jornal Expresso que em Marco de Canavezes existe uma família a receber o subsídio mínimo?

Pareceque não soube gerir a sorte que lhes coube no Euro milhões, mas ainda possuem 2 vivendas e 3 carros de topo de gama num valor global de cerca de 700.00 Euros.

Oh! queridos, com dirigentes assim, com ministros que consentem dirigentes assim, tudo o mais só permite uma conclusão: temos aquilo que merecemos...

Fazia-lhes mal venderem uma casa ou 1 ou 2 carritos?

Com esta diversidade vocês querem o quê?
Justiça a horas? Moralidade?

Vou dar uma volta...
Josefina Parreira

capitolina disse...

Eu concordo com o sr. Abade de Coelheiros.
Ao Francisco, embora entendendo os seus cuidados, acho-o demasiado cuidadoso. lembra-me a gente da comunicação social que, sempre que se pretende definir regras mais rigorosas, gritam contra os atentados à liberdade...

Anónimo disse...

Caramba,

Eu estou contra todos os fundamentalistas, é preciso alguma calma nisso de deitar abaixo.

Então, os tipos da CM são una chatos, imaginem que querem deitar-me abaixo um barraquito (até esmerado no aspecto) que fiz nas traseiras.

Eles querem que eu me comporte como um munícipe de Dusseldorf, mas eu só pago contribuição (IMI) como eles, mas não ganho nem tenho mordonias como lá na Alemanha.

Eu digo que a lei mudou e que a partir de Março de 2008 posso construir sem dar cavaco nas traseiras e sem que confronte com a via pública, até 10 m2.

Ah!, mas eles não vão na cantiga e dizem que, 3 meses depois dessa alteração da lei, a CM publicou um Regulamento Municipal a dizer que essas coisas não eram bem assim e que tem de haver uns cuidados e autorizações...

Bom, com portugueses assim no poder, e muitos outros a pô-los lá, digam-me lá se o que diz a lei tem alguma importância??!!
Não acham melhor deixar tudo como está?
Ir para tribunal? E posso? E não morrerei antes disso findar?

( freguês do senhor Abade)