segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Uma república de todos e para todos

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A questão não é se pode haver um governo de esquerda, claro que pode, mas sim o que quer dizer podermos ter um governo de coligação de esquerda ou um acordo de governação à esquerda. Na minha opinião, quer dizer que Portugal mudou. As sociedades mudam e talvez Portugal tenha completado agora um ciclo iniciado há 40 anos.

Em Portugal sempre foram os partidos mais votados a serem governo porque, ao longo de 40 anos, vencendo o PS ou o PSD sem maioria absoluta, só havia mais um partido ou um conjunto dos seus deputados disponível para formar governo, o CDS-PP.

Essa percepção de que só havia um partido disponível para além de PSD e PS começou por resultar de uma realidade, a oposição do PCP e PEV em negociarem governos com PSD e PS, mas num qualquer momento ganhou a forma de certeza inabalável e imutável do estilo “toda a gente sabe que o PCP e o PEV nunca apoiarão um governo do PSD ou do PS”.

Por sua vez, com a chegado do BE ao Parlamento apenas se fez uma adaptação das certezas quanto à formação de governos passando a assumir-se que “toda a gente sabe que o PCP, BE e PEV nunca apoiarão um governo do PSD ou do PS”.

No entanto, essa certeza absoluta era, na realidade, apenas circunstancial e não definitiva, mudaria quando tal fosse do interesse dos protagonistas. E, independentemente do resultado final das negociações, este é o momento em que parece poder ter mudado.

Mas porque mudou a percepção de PCP, PEV, BE e também do PS? A minha sugestão é que a mudança não é apenas circunstancial e devida a um conjunto de factores que se traduziu nas diferentes votações dos partidos. O PàF, o PS, a CDU, o BE e o PAN tiveram as votações que tiveram porque individualmente os portugueses votaram neles, porque confiaram, em diferentes graus, nos seus líderes, programas e deputados.

Mas o que nos diz a leitura agregada de votos? O que podemos inferir? A hipótese que aqui quero partilhar é a de que terminámos um ciclo político longo de 40 anos. Os cidadãos continuam a confiar em todos os partidos em que votaram, não fizeram desaparecer nenhum, embora tenham aumentado os votos nuns e diminuído noutros. O que argumentaria é que perderam a confiança nos fundamentos desta república iniciada em 25 de Abril de 1974 e isso se traduziu na distribuição de votos.

Os portugueses continuam a gostar de defender a ideia de que todos têm direito a um futuro melhor mas deixaram de acreditar que isso seja possível para todos. Deixaram de acreditar nessa igualdade de inclusão devido à crise de 2008 e aos seus efeitos, aumentados primeiro pela governação final do PS e, depois, pela do governo PSD-CDS, no contexto de crise, intervenção externa e pela política de austeridade associada à ideia de que “se viveu acima das possibilidades”.

Os portugueses votaram nestas eleições sabendo que a ideologia dominante na União Europeia está assente no comércio livre, no Estado Social, no pro-europeianismo e na austeridade.

No entanto, porque deixaram de acreditar que o futuro da república será sempre melhor, tal como o ideário do 25 de Abril lhes havia anunciado, desejaram abrir o leque de possibilidades de governação na expectativa de que lhes demonstrem que não é inevitável que nem todos possam aspirar a um melhor futuro.

Daí que possamos imaginar que os eleitores também quiseram dizer “não acreditamos em governos, mas eles existem” e talvez até sejam capazes de governar, demonstrando que ainda podemos continuar a caminhar no sentido de uma república de todos e não de uma república de exclusão.»
(Gustavo Cardoso. Na íntegra: aqui. Destaques meus)

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