A intenção anunciada pelo PS no seu programa eleitoral de proceder à institucionalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, retomada no Programa do XVIII Governo Constitucional, foi novamente reafirmada por José Sócrates durante o debate sobre o Programa do Governo, tendo o primeiro-ministro recusado, na mesma altura, submeter o assunto a referendo. A meu ver, bem e direi porquê.
A propósito do casamento entre pessoas do mesmo sexo, já, noutra altura, me pronunciei e não vou aqui repetir argumentos. Já quanto à realização do referendo é matéria nova e não me vou eximir a emitir opinião sobre o assunto.
É evidente que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é assunto sujeito a acesa controvérsia, já que continuam a persistir, na sociedade portuguesa, preconceitos contra essa instituição, preconceitos fundados, na maior parte dos casos, em considerações religiosas. Não admira, por isso, que entre as vozes que se têm pronunciado contra tal figura jurídica surjam várias instituições religiosas, com a Igreja Católica à cabeça, e que as mesmas instituições defendam a realização do referendo, na esperança, por certo, de que, por essa via e tendo em conta o conservadorismo vigente na sociedade portuguesa, em matéria de costumes, se inviabilize a concretização da reforma do instituto do casamento.
Reconheço que, em democracia, qualquer cidadão, grupo ou instituição, mesmo religiosa, tem o direito de se pronunciar sobre qualquer assunto e, consequentemente, também sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Considero, no entanto, que para o debate não podem ser chamadas considerações religiosas, pois não é um problema religioso o que está em causa. O casamento entre pessoas do mesmo sexo, tal como o casamento entre pessoas de sexos diferentes, num Estado laico, como o nosso, é, estritamente, um assunto do foro do direito civil e, como tal, é apenas ao Estado que cumpre decidir e regulamentar.
Ora, actualmente, no plano do direito civil, o casamento não é mais que um contrato (solene, embora) celebrado entre duas pessoas (até agora, de sexo diferente) que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida. Tendo em conta a definição do casamento existente no nosso direito, definição onde nem sequer entra a propalada finalidade da procriação, não se vê que valores podem ser invocados para impedir que duas pessoas do mesmo sexo possam celebrar um contrato com idêntica finalidade: constituição duma família, mediante uma plena comunhão de vida.
Ora, a verdade é que existem pessoas do mesmo sexo que, de facto, mantêm uma relação de vida em comum, por sua livre opção, e que, com razão, reclamam o reconhecimento, de jure, dessa relação.
Digo com razão, porque a relação estabelecida entre essas pessoas resulta do exercício legítimo da sua liberdade e, como tal, não é questionável nem pelo Estado, nem por qualquer outra organização, já que tal exercício não contende com a liberdade de outrem, sendo certo também que a exigência do reconhecimento da relação por parte do Estado é não só legítima, como se impõe por força do princípio da igualdade entre os cidadãos e do princípio da não discriminação.
Estando em causa princípios constitucionalmente garantidos, como é o caso dos acima citados, forçoso é concluir que o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo não pode, sequer, ser objecto de referendo, do ponto de vista constitucional. A obrigação do Estado e de todos é, muito simplesmente, reconhecer e respeitar os direitos em questão e retirar daí as devidas consequências, ou seja, no caso, consagrar, por via legislativa, o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Eventualmente, com adaptações que os peritos na matéria considerem ser objectivamente justificáveis.