«Estou indignado com a hesitação da direita acerca da insigne questão que mais se discute nos cafés, em casa e nos intervalos do trabalho e que tem Portugal em suspenso: vão ou não os legítimos apresentar uma moção de rejeição que arrase com o bando de irresponsáveis que ocupou o parlamento? Vão apresentar a folha que não vai deixar pedra sobre pedra, que rebenta tudo num fogo de artifício que ilumine Almada?
Chegou-me aos ouvidos, ou lendo uma gazeta, que havia dúvidas entre os legítimos. Não posso acreditar.
Anda o eurodeputado frenético na televisão, vociferam os cabos partidários, marcham as concelhias a oferecer tropas, houve até uma manifestação de 40 pessoas contra o golpe de Estado e eu sei que não são tantas quanto a indignação que ferve pelo país, mas são só os arautos da vaga fulminante que está para chegar, e há quem se amedronte, quem hesite, quem se pergunte, quem consulte o comité?
Já era de desconfiar pelo ar seráfico com que Passos Coelho se sentou para tirar fotografias para o cartão de deputado, ele, que é primeiro ministro pela graça altíssima. E pelo silêncio divertido de Portas, como se preferisse a farra dos debates, já não há mais viagens, nem feiras internacionais, nem contratos nos Emiratos Árabes Unidos, nem Cazaquitão, nem Venezuela, nem Roma, nem Berlim, nada de nada. Já era de desconfiar pelos abracinhos de Costa a Merkel, a fingida.
Há marosca no ar, notei isso quando os chefes dos legítimos passaram pelo corredor nos Passos Perdidos como se aquilo fosse o seu lugar, e então o destino, os deuses, o cosmos, até os amigos? Cem nomeações nas últimas horas, ora quantas famílias ficaram esquecidas, digam lá? Não, nunca, jamais, cada portaria, cada venda assinada à pressa foi uma confissão de que esperam que se instalem os ilegítimos ou, nem quero pensar, aceitam os golpistas e recomendam-lhes o ministério.
Foram traídos pelo homem de Belém, é certo. Magoou, não se esperava isto mas antes um arroubo de patriotismo e de partido que fechasse as portas, aqui não entra gentalha, não passarão nunca. O homem resmungou e exigiu explicações, logo ele que sabe tudo e raramente se engana, como se pudesse ter dúvidas sobre a tragédia nacional que foi aquela gente alcandorar-se ao poder, mas cedeu, traiu é a palavra certa, deu posse àquela maralha e retirou-se altivamente para o esquecimento.
Mas agora chegou a hora da decisão, da nossa decisão. E peço. Não, exijo, exijo mesmo uma moção, uma carga de cavalaria pelo menos em papel para dispersar a turba, para arrasar esses maltrapilhos, para pôr na ordem a multidão. Uma moção enérgica, uma rejeição firme que permita aos nossos deputados não serem enxovalhados pelos descamisados que lhes vão perguntar pela consequência. Havemos de levantar os olhos e dizer: aqui está a vossa lápide, a moção acaba com os ilegítimos, sacode os fracos, devasta os planos que andaram a negociar com esses suspeitos que nem são os do costume, restitui a economia aos seus donos, confirma o caminho árduo e certo que os nossos chefes traçaram para o país, dá rumo à vida. A moção reconquista o nosso Portugal.
É só isso que devem discutir hoje de manhã na comissão respectiva. Mandar uma bombarda contra S. Bento ou ficar sentados. O CDS, de sangue na guelra, já autorizou a moção defenestradora. O PSD é que hesita, logo ele, o legítimo dos legítimos. Constou-lhes que Costa põe uma vela pela moção, que lhe dá um jeitão, que assim lhe oferecemos tem a sua moção de confiança e que, alegando a moção que ele é ilegítimo, fica-lhe reconfirmada a legitimidade porque é voto maioritário em órgão soberano, ou seja, a moção teria a virtude de antes de o ser já não era. Parco resultado para muito esforço, ajudar o adversário então, dizem estas insinuações maledicentes.
Constou-lhes ainda, no PSD, que a esquerda, nos seus tratos com o PS, prefere um CDS colado ao PSD por pactos de sangue e morte, do que solto a fazer cálculos eleitorais. Parece até que prefere que jurem que vão juntos às putativas eleições, mesmo que elas sejam mais tarde, que isto de esperar pelas colheitas do Verão parece mais coisa de agricultor rotinado do que de político sábio.
Não liguem, companheiros. Senhores e senhoras, às vossas armas e fogo à peça. Ou uma moção, pelo menos. Não podemos passar quase dois meses em aflições para que os legítimos, que são Passos e Portas, saiam agora mansamente de cena como se a sua vez tivesse acabado.
Não se rendam, não se calem, não deixem de mocionar o parlamento, sempre em frente, carga a trote, berros ao alto, mostrem como se atropela o centro, moderados são os cobardes, guerra sem quartel, não há prisioneiros.
Mas se não for porque a afronta exige um banho de rejeição, que seja pelo menos para que Portugal possa saber que a maioria que ficou minoria e que sabe que ganha mesmo quando perde porque está escrito no destino, e quem escreve o destino perguntará você, pois é a minoria que se declara maioria mesmo quando continua minoria, que demanda votos mas que lhe faltam, tudo talvez um pouco confuso mas o resultado é que importa: rejeitar os ilegítimos e entregar o governo a quem deve mandar, ganhando ou perdendo.
Porque sim, é o destino, e o destino é mais belo do que a aparência e os bons costumes. Nascemos para governar, a ilegitimidade é afrontosa porque questiona o destino. Varramos essa gente com uma moção e tenho dito.»
(Francisco Louçã)
(Reproduzido na íntegra, porque julgo que
a publicação original não é acessível a quem não seja assinante do "Público"
on line. Imperdível.)