sábado, 16 de maio de 2015

Pobres de espírito *

«A Expo 2015, em Milão, é dedicada às arrecadas de ouro de Viana do Castelo, ao cavaquinho e ao Licor Beirão. Já é surpreendente que o quase centenário Gabinete Internacional de Exposições tenha decidido fazer uma Exposição Universal com assuntos tão portugueses. Mas o mais extraordinário é que o apelo pelos valores lusos acabou por ser acolhido por 142 países. Dão-se conta? O pavilhão das Seychelles a mostrar renda de bilros, o da República Islâmica do Irão a distribuir cálices de ginjinha e no dia da Finlândia vai ouvir-se um lapão a cantar o fado... Grande Portugal, quanto das tuas coisas típicas é orgulho universal!

Eu minto, mas só um pouco. O interesse da Expo 2015 não é pelas pequeninas coisas avulsas portuguesas. Não é por Belém (o pastel), é pelo fantástico que Belém (a Torre) significa na História Universal. A minha pequena mentira do primeiro parágrafo esconde a verdade grandiosa da Expo de Milão: ali se saúda (e é esse o seu lema) "a alimentação no mundo", isto é, as coisas de comer passeando por aí. E que é isso senão Portugal? O daqui para ali da cana-de-açúcar e do abacateiro, a história do viajante amendoim, o milho turista, o cacaueiro que partiu e a pimenteira que chegou, a peregrina palmeira de dendém e o excursionista café... Não, não foi Portugal que os inventou, mas foi Portugal que os apresentou ao mundo.

Porém, nesse lugar - Milão, hoje - onde o mundo glorifica a comida, Portugal não está presente. Não tem pavilhão, nem banca, nem um simples papelinho distribuído à entrada: "Olá, vocês não se lembram, mas já nos conhecemos. Foi Portugal que vos apresentou a/o [e aí o folheto diria o nome dum tubérculo, dum fruto, dum cereal]..." Aos brasileiros deu o café para conversar; à China e à Índia, a batata; e vindo dos Andes, o chili pepper, o jindungo que, passando pelo Brasil, deu sentido às sopas tailandesas e coreanas. Reparem, nem falo da paprica húngara - só reivindico as entregas diretas. A Budapeste, o picante só chegou depois de passar pela Turquia, trazido da Índia, onde, em Goa, os portugueses tinham metido o jindungo novindaloo. Leiam alto e descubram a origem da palavra: "vinha-d"alho"... O vindaloo encontrei-o, também deturpado, em Trindade e Tobago e no Havai.

Em 1972, o americano Alfred W. Crosby publicou The Columbian Exchange (A Troca Colombiana), sobre uma mudança-chave da história, quando o Velho Mundo se encontrou com as Américas. Nesses anos, 1492, com Colombo, e 1500, com Pedro Álvares Cabral, o planeta começou a ser pintado redondo. Global, como hoje se diz. No maravilhoso A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses, de 1992, José Mendes Ferrão explicou essa contribuição portuguesa. O mais comum prato angolano, o funje, é acompanhado por fuba de milho ou por fuba de mandioca. O milho e a mandioca vieram do Brasil. E não se espalharam só pelas antigas colónias portuguesas, são as duas farinhas mais comidas em toda a África. O molho desses pratos é feito com óleo de palma, do coconote, que foi levado pelos portugueses da Índia (Goa) e Sudeste da Ásia (Malaca) para África e Brasil. Quem come moqueca em Salvador da Bahia, saboreia Goa, sem que a agência portuguesa de viagens cobre taxas. No Nordeste brasileiro, chama canjica ao mingau de milho, ou munguzá, se for sem tempero e sal. Os nomes vêm do quimbundo angolano, kanjika e mukunza. Quer dizer, a viagem das plantas não foi feita calada, uniu povos, para lá do palato.

A cana-de-açúcar tem origem na Índia e chegou a Pernambuco, o café é da Arábia e chegou a São Paulo. "E quem levou?", perguntaria o folheto que devíamos levar a Milão, já que não temos pavilhão. Os portugueses conhecem o ananás desde 1500, do Brasil. Levaram-no para estações de aclimatação, para os Açores, para o tornar de outro mundo (como levaram o cacau para São Tomé). Durante décadas, o Havai foi o maior produtor de mundial de ananás, mas só o começou a produzir em 1886, oito anos após o Reino do Havai, graças a um acordo de emigração com Portugal, já ter camponeses de São Miguel, Açores...

O pavilhão da Santa Sé, na Expo 2015, diz que a comida é também assunto de rituais e símbolos. Claro. E os portugueses foram apóstolos do valor sagrado do pão, espalharam-lhe a palavra e os sabores. O governo português diz que não temos pavilhão porque não temos dinheiro. É falso. Não estamos lá porque quem decidiu é pobre de espírito. Não merece Portugal

(Ferreira Fernandes: "Sim, não fomos à Expo 2015 por pobreza. De espírito". Destaque meu)

* Como se prova, uma vez mais.

1 comentário:

Majo disse...

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~ ~ Concordante com o que eu tenho vindo a afirmar,
~ todavia aperta-nos o coração e arde-nos os olhos...
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