"Recentemente, o presidente da Associação 25 de Abril, coronel Vasco Lourenço, declarou que "o poder foi tomado por um 'bando de mentirosos'" e "apelou aos militares para estarem ao lado da população caso se verifique repressão policial nas ruas". Depois clarificou: "Se houver anarquia, situações de distúrbios de ordem pública, como aconteceu noutros países, a repressão é desejável. O que temo por alguns sinais, é que haja a tentação do poder de, às primeiras convulsões na rua, mesmo que sejam relativamente pacíficas, aparecer com mangueiradas à moda antiga e outro tipo de atitudes. Se nós tivermos, por exemplo as forças de segurança a atirar sobre a população, como é?". Logo vieram os "grandes defensores da democracia" insurgir-se contra as declarações, na sua perspectiva inaceitáveis num tal regime, pois sugeriam uma sublevação do poder militar. Curioso foi verificar a mudez de tais "paladinos" perante a grosseira violação de compromissos eleitorais (numa extensão, profundidade e gravidade nunca vistas) pelo Governo: bem como o seu silêncio sobre as ofensas ao Estado de direito e à Constituição (CRP) que representam muitas das medidas extraordinárias recentemente aprovadas, e que como tal têm sido reconhecidas por constitucionalistas de diversos quadrantes. Pelo contrário, creio que, perante as graves violações de princípios democráticos e as ofensas à CRP e ao Estado de direito, nomeadamente com as medidas extraordinárias, fica justificada a resistência pacífica: "Direito de Resistência: Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública (artº 21 da CRP)."
Em A Era dos Direitos, Norberto Bobbio explica: "O processo que deu lugar ao estado liberal e democrático pode ser correctamente chamado processo de 'constitucionalização' do direito de resistência e de revolução. Os institutos através dos quais se obteve esse resultado podem ser diferenciados como base nos dois modos tradicionais mediante os quais se supunha que ocorresse a degeneração do poder: o abuso no exercício do poder (o tyrannus quoad exercitium) e o défice de legitimação (o tyrannus absque titulo)." Por um lado, muitas das medidas extraordinárias do Governo, designadamente as mais gravosas (cortes de salários e de subsídios; congelamento de carreiras e de efeitos de da avaliação de desempenho; de aumento do horário de trabalho, etc.), extravasam os programas dos vencedores nas legislativas de 2011, o programa de Governo e o memorando da troika. Carecem de legitimidade política. Por outro lado, ao pretenderem fazer pagar pelas derrapagens nas contas sobretudo os funcionários públicos e os pensionistas, ofendem a CRP e o Estado de direito. São abusos de poder. Logo, será legítimo accionar-se o "direito de resistência" pacífica.
A resistência contra a usurpação do poder legítimo, em democracia, pode ser protagonizada pela oposição. Porém, o PS abdicou de o ser e traiu grosseiramente os seus eleitores: disse que não acompanharia as derivas radicais da direita para além do memorando de entendimento, mas, ao abster-se no orçamento, sufragou todas essas derivas. Abdicou de ser oposição responsável. Por seu lado, a esquerda radical ainda não parece ter percebido que perdeu as eleições, que há um programa de assistência internacional que, concorde-se ou não, o Estado português deve tentar cumprir. Aliás, tal programa parece hoje soft perante o radicalismo do Governo. Portanto, a existir, a resistência terá de vir dos cidadãos, dos movimentos cívicos e dos sindicatos. Para serem eficazes, uns e outros terão de agir de forma concertada no sentido de exigirem que se cumpra o prometido e que tudo o que eventualmente seja necessário para além disso seja negociado com a oposição e a sociedade civil, e seja equitativo. Os cidadãos e os seus representantes organizados teriam de exigir aos partidos da oposição uma oposição responsável, não uma capitulação irresponsável. Mais, os cidadãos, sobretudo os de esquerda, deveriam exigir responsabilidade e pragmatismo das várias esquerdas para que se entendessem e acabassem com a situação de um PS sempre enfeudado à direita.
Se quisessem ser eficazes, também os sindicatos deveriam participar activamente na resistência pacífica. Mas não basta fazerem greves gerais, mesmo que bem sucedidas, seria preciso uma luta frentista e continuada até o poder ceder em objectivos essenciais. Deveriam porventura avançar com fundos de greve, para impedir que os mais necessitados não fossem impedidos de exercer os seus direitos, e deveriam ponderar greves continuadas como as que os médicos estão a propor às horas extraordinárias. E todos os funcionários públicos, nomeadamente os professores universitários, deveriam ponderar uma greve sistemática ao embuste meritocrático (i.e., sem consequências) chamado avaliação de desempenho. Mais, deveriam também ponderar greves de zelo como a proposta por João Caupers em Os funcionários públicos não são lixo: sem se prejudicarem os utentes dos serviços, os profissionais da saúde, da educação, etc., deveriam ponderar recusar-se a preencher a maioria dos (inúteis e inconsequentes) relatórios burocráticos. A resistência pacífica dos cidadãos às medidas ilegítimas e abusivas de um Governo é essencial para a defesa de uma democracia de qualidade e do Estado de direito constitucional"
(André Freire, in "Público", edição impressa de hoje. Na integra)
Sem comentários:
Enviar um comentário