"(...)
Nestes dias sujos e vociferantes, muitas palavras se têm escutado sobre as escutas. Em quase todas elas, há aquela mistura de moralismo e ódio, alvoroço e justicialismo, mediocridade e exibicionismo que preside aos grandes desastres. Dizer que os meios ganham razão pelos fins é dar voz à barbárie. Mas há sempre juristas para a defender, tornando legítimo o ilegal e justo o intolerável. Em todos os crimes dos despotismos, do ordálio medieval aos julgamentos de Moscovo, houve juristas a fazer da sua argumentação uma justificação e mesmo uma apologia do monstruoso. Esses crimes foram sempre perpetrados em nome de um "interesse superior": da Verdade, do Bem, do Estado, da Nação, do Público, da Raça, de Deus. Ficaremos todos mais prevenidos e lúcidos quando um dia se fizer uma história do direito como aliado da barbárie.
(...)
Tornar conhecidas escutas, obtidas criminosamente, e fazer disso uma grande boa consciência é um começo que não tem fim. Haverá todos os dias uma nova razão (moral, política, económica, social, desportiva) para uma nova expedição às terras arenosas da infâmia. Mas usar as escutas, fazendo uma declaração prévia de má consciência por as usar, não chega para trocar a vergonha pela honra. Oiço dizer: 'Odeio escutas. Tudo isso me repugna, mas agora que as conhecemos não as podemos ignorar'. Aqueles que dizem isto (afirma um amigo meu) é como se dissessem: ' Sou contra a tortura, mas reconheço a sua utilidade para obter boas confissões.' (...)"
[José Manuel dos Santos, Escutas (in Actual - Expresso - 6 Março 2010)]
1 comentário:
É um texto magnífico esse. José Manuel dos Santos não pactua com o mundo rasteiro em que tantos têm chafurdado. Já precisávamos de ler um testemunho de lucidez há uns tempos.
É sempre um prazer lê-lo pelo domínio da língua. Por vezes é de uma poeticidade luminosa.
Enviar um comentário