Por razões que não vêm ao caso, só agora, ao pôr as leituras em dia, constatei que o Tribunal Constitucional chumbou o diploma aprovado na Assembleia da República, com os votos favoráveis de todos os partidos, com a excepção, única, mas honrosa, do PS, que criava um novo tipo legal de crime impropriamente designado, a meu ver, por "enriquecimento ilícito", por violação dos artigos 18.º n.º 2, 29.º n.º 1 e 32.º n.º 2 da Constituição da República.
Se a inconstitucionalidade derivada das duas primeiras normas, não era de invocação assim tão evidente, já a resultante do nº 2 do artigo 32º que consagra a presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória era mais que óbvia, não tendo, aliás, faltado vozes autorizadas a chamar a atenção para a violação dessa norma. Outra não foi, aliás, como se sabe, a justificação repetidamente apresentada pelo PS para votar contra o diploma. Tão óbvia era, no entanto, a inconstitucionalidade que não passa pela cabeça de ninguém supor que os deputados que aprovaram o diploma não tivessem consciência disso. Crer no contrário seria pôr em dúvida a inteligência de tais deputados, ofensa a que não me atrevo.
Assim sendo, não é difícil concluir que a aprovação do diploma, por mais uma espúria coligação entre a direita e a extrema esquerda, não foi mais que um exercício de demagogia, em homenagem ao populismo, conclusão que é de tão mais fácil extracção quanto é certo que são mais que legítimas as dúvidas sobre a eficácia do diploma no combate contra a corrupção. De facto, a prova, a cargo do Ministério Público, de não ser conhecida qualquer forma legítima de aquisição a justificar o enriquecimento é uma prova simplesmente impossível, pelo que, a menos que o julgador se contentasse com a simples alegação do desconhecimento, o que não é sequer pensável, cada acusação não podia deixar de ter como resposta a correspondente absolvição.
O que espanta, em todo este caso, é a forma leviana como os partidos que aprovaram o diploma se atreveram a pôr em causa direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. E digo leviana, além do mais, porque sendo a medida ineficaz, outra utilidade não teve que não fosse a de servir de arma de arremesso contra o PS, por alegado pouco empenho na luta contra a corrupção.
Ora a verdade é que até agora não vi medida mais eficaz e consequente na luta contra a corrupção do que a consubstanciada na proposta apresentada pelo PS na AR, ao encarar a questão do "enriquecimento ilícito" no plano fiscal, proposta que, conquanto ridicularizada pela "espúria coligação", não só removia desde logo o problema da inconstitucionalidade, como colocava a questão na sede própria. De facto, a expressão "enriquecimento ilícito" não é, seguramente, a mais adequada para traduzir a realidade. Mais apropriado será falar-se de "enriquecimento não explicado", pois o que está em causa é a disparidade aparentemente injustificada entre o património detido pelos cidadãos e os rendimentos declarados ao Fisco. E a verdade é que esta entidade é a única a dispor de meios para verificar a existência da disparidade e para, do mesmo passo, pedir explicações ao detentor do património aparentemente injustificado, explicações que este tem a obrigação legal de dar, sob pena de sofrer as correspondentes sanções fiscais. O contribuinte não justifica, não explica, logo paga. Nada mais simples, nada mais eficaz. Não duvido, por isso, que a luta contra a corrupção, depois do "chumbo" do diploma pelo Tribunal Constitucional, terá de passar por medidas como as contempladas na proposta do PS, ou por outras na mesma linha. Tenho, porém, as minhas dúvidas sobre se os partidos da "espúria coligação" terão capacidade para engolir a desfeita e seguir pelo caminho apontado pelo PS, caminho que, sabe-se agora com toda a certeza, é o único viável.
Seja como for, cabe agora aos partidos da "espúria coligação" fazer a prova do empenho na luta contra a corrupção. A do PS ficou feita.