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A situação da justiça e do país tem vindo a degradar-se, sem que se vislumbrem soluções que restabeleçam a confiança do povo português no nosso sistema judicial e no sistema político vigente.
A mentira, a demagogia e a irresponsabilidade foram erigidas em métodos privilegiados de actuação política.
As controvérsias estéreis substituíram com êxito o debate sério sobre os grandes problemas do país.
Vale tudo para ganhar eleições e, uma vez ganhas, logo os compromissos eleitorais são ignorados.
Há menos de um ano apenas, o governo de então caiu porque ousara propor medidas de austeridade muito mais suaves para o povo e para a economia do que aquelas que agora são impostas por aqueles que então se opunham a tais medidas e garantiam solenemente que nunca fariam coisa semelhante.
Algumas das medidas de austeridade que estão a ser impostas ao país nem sequer foram exigidas pela TROIKA nem constam do acordo com Portugal.
Perdeu-se todo o respeito pelos eleitores.
Muitas dessas medidas respondem tão só a uma agenda de interesses cuidadosamente ocultada durante os debates político-eleitorais que precederam a mudança de governo.
A crise também está a ser usada como pretexto para satisfazer antigas reivindicações dos sectores mais retrógrados dos nossos empresários, sobretudo daqueles que não foram capazes de se adaptar às exigências da modernidade e persistem agarrados aos arquétipos do mais primário liberalismo económico.
Em Portugal sempre foi mais fácil ser patrão do que ser empresário.
Mais fácil e mais compensador.
Os direitos laborais e sociais dos cidadãos deste país não são a causa desta crise nem constituem um obstáculo sério à sua superação.
Todavia parece que a receita para a vencer passa pelo empobrecimento generalizado da população.
Todos temos a percepção de que os sacrifícios que estão a ser impostos aos portugueses são desproporcionados em relação à gravidade da situação e não são equitativamente distribuídos.
A uns exige-se mais do que a outros e, em muitos casos, aqueles a quem mais se exige não são, seguramente, os que mais podem contribuir.
O povo português está no limite das suas capacidades e começa a dar sinais preocupantes de não suportar mais sacrifícios.
Há, de facto, um limite para os sacrifícios e esse limite já foi ultrapassado sem que, aparentemente, os nossos governantes se preocupem com isso.
Um perigoso sentimento de revolta está a generalizar-se em vastos sectores da população, não tanto devido ao peso das medidas de austeridade que lhes são impostas mas sobretudo pelo sentimento de injustiça que provocam.
Nem todos contribuem para a superação da crise e, principalmente, nem todos contribuem segundo as suas capacidades.
Há sectores e entidades que se isentaram dos sacrifícios, sem qualquer justificação aceitável à luz dos mais elementares princípios de igualdade e de equidade.
Não se compreende por que é que os funcionários públicos hão de ser mais sacrificados do que os outros sectores da população e, sobretudo não se compreende por que é que dentro da função pública há de haver sectores que ficam isentos de algumas medidas de austeridade e outros não.
Sejamos claros e justos: se é em respeito pela independência do Banco de Portugal que os quadros e funcionários desta instituição não serão obrigados a prescindir dos subsídios de férias e de Natal, então por que é que não se aplica o mesmo critério a outros órgãos do estado onde a independência é também um requisito para bom desempenho das suas funções?
Haverá entidade onde a independência seja mais necessária do que nos Tribunais?
Então por que é que os magistrados não tiveram tratamento idêntico ao dos quadros e funcionários do Banco de Portugal?
A independência do Banco de Portugal é mais importante para o governo do que a independência dos tribunais?
Por outro lado, as mesmas castas de privilegiados continuam a auto-isentar-se de sacrifícios e, mais do que isso, continuam a banquetear-se indiferentes aos sacrifícios impostos ao povo português.
As gigantescas remunerações que gestores transformados em políticos e políticos transformados em gestores se atribuem uns aos outros em lugares e cargos para que se nomeiam uns aos outros constituem nas circunstâncias actuais uma inominável agressão moral a quem, muitas vezes, é obrigado a cortar na satisfação de necessidades essenciais.
Há gestores de empresas, algumas delas até há pouco controladas pelo estado, que ganham num ano aquilo que a maioria da população só conseguiria se trabalhasse mais de um século ininterruptamente.
E isso, pressupondo que auferia um ordenado de mil euros mensais, pois aqueles cujas remunerações estão mais próximas do salário mínimo teriam de trabalhar mais de duzentos anos, consecutivamente, para conseguir o mesmo rendimento.
As nomeações para cargos públicos de amigos e familiares, de familiares de amigos e de amigos de familiares multiplicam-se escandalosamente, criando no aparelho de estado um gigantesco polvo clientelar cujos tentáculos se estendem já a empresas privadas onde o governo detém influência política.
Por outro lado, continua-se a alienar património público, em alguns casos com enorme valor estratégico para o interesse nacional, com o argumento de que o estado não deve estar na economia.
Mas, estranhamente, essa alienação em alguns casos é feita a empresas propriedade de outros estados.
(...)
Um delírio populista apossou-se do legislador.
De repente descobriu-se a fórmula mágica que vai acabar com a impunidade absoluta da corrupção, que vai eliminar os expedientes dilatórios e vai pôr fim aos atrasos processuais.
Finalmente os criminosos vão ser todos apanhados - pelo menos por câmaras de filmar - e os crimes até já nem vão prescrever.
A investigação criminal deixará de se preocupar com a recolha de provas materiais dos crimes (que dá trabalho e custa dinheiro) para se orientar apenas ou preferencialmente para a obtenção de confissões – esse meio de prova que tão bons resultados deu na Inquisição, nos processos de Moscovo e nos tribunais plenários do Estado Novo.
Os tribunais passarão a poder condenar um arguido não pelo que ele disser em julgamento perante o julgador mas pelo que ele tiver dito aos acusadores durante as investigações.
Os juízes deixarão de se preocupar apenas com os julgamentos e com a condenação ou absolvição dos acusados e passarão, eles próprios, a preocuparem-se com a investigação dos crimes e a acusação dos suspeitos.
Com este governo os juízes deixarão de ser apenas julgadores e serão também procuradores e polícias, pois passarão a poder aplicar, durante o inquérito, medidas de coacção e de garantia patrimonial mais graves do que as requeridas pelo próprio Ministério Público, incluindo a prisão preventiva.
O governo pretende que, mesmo quando, durante o inquérito, os investigadores não considerem a prisão preventiva de um suspeito necessária ou útil para as investigações, o juiz a possa decretar por mero arbítrio pessoal.
Assim, o juiz de instrução, em vez de constituir uma garantia para os direitos dos cidadãos, transformar-se-á numa ameaça a esses direitos; em vez de impedir os abusos persecutórios dos investigadores, passará a exacerbá-los ainda mais; em vez de ser o juiz das liberdades passará será um juiz-polícia.
(...)
Discurso do Bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto, na cerimónia de abertura do ano judicial. Na íntegra: aqui
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