Em editorial do "Expresso" do passado sábado qualifica-se como "recusa incrível" o facto de o PS não aceitar a criminalização do enriquecimento ilícito, sustentando-se no mesmo local que a fundamentação dessa posição assenta numa ideia errada: a de que essa criminalização conduziria à inversão do ónus da prova, bastando-se, para afirmação tão peremptória, com a opinião de "vários especialistas" que não cita.
Como não são citados, continuaremos, lamentavelmente, sem possibilidade de os conhecer e de ter acesso à sua argumentação para ser possível confrontá-la com a posição conhecida de algumas personalidades com especial autoridade e competência que defendem precisamente o contrário.
Mas já lá iremos.
Recordo, antes de mais, que todas as entidades com responsabilidades no combate à corrupção (e é disso que se trata), incluindo o Provedor de Justiça, ouvidas na comissão parlamentar presidida por Vera Jardim se mostraram contrárias à instituição do "enriquecimento ilícito" como novo tipo legal de crime.
E não é difícil compreender porquê. O enriquecimento, quando ilícito do ponto de vista criminal, já é sancionado através dos vários tipos legais de crime previstos na lei (cito, sem preocupação de exaustão: furto, roubo, abuso de confiança, usurpação, burla, extorsão, infidelidade, usura, apropriação ilegítima, administração danosa, falsificação, corrupção e peculato) não havendo, por isso, pelo menos aparentemente, justificação para a criação do "enriquecimento ilícito" como crime autónomo. De facto, justificação, propriamente, não há, mas conhece-se a razão por que tem defensores. E a razão é esta: a prova dos crimes acima citados, nem sempre é fácil. O crime de "enriquecimento ilícito" surge precisamente para ultrapassar a dificuldade. E como? Se a acusação não consegue provar a ilicitude criminal ou a culpa com os meios que tem à sua disposição, a maneira mais simples e eficaz de obter uma condenação é inverter o ónus da prova, ou, o que vem a dar no mesmo, presumir, verificados determinados pressupostos, que o arguido ou réu é culpado, se ele próprio não fizer prova de que o seu enriquecimento é lícito. O que significa que, se se quiser ser intelectualmente honesto, não se poderá falar dum crime de "enriquecimento ilícito" mas sim dum crime "enriquecimento ilícito presumido" .
Que assim é, provam-no as formulações já conhecidas apresentadas pelo PSD, pelo PCP e pelo BE, que o leitor e o editorialista do "Expresso" podem consultar em dois notáveis escritos do juiz Pedro Soares de Albergaria (
aqui e
aqui) complementados por dois outros, não menos claros e contundentes, do juiz conselheiro, Eduardo Maia Costa (
aqui e
aqui).
Para encurtar razões, diria pois que a posição que o PS tem tomado nesta matéria não só não é uma "recusa incrível" como é a única consentânea com a Constituição da República que consagra formalmente (art. 32º) o princípio da presunção da inocência, impondo, pois, à acusação a prova dos factos imputados, da sua ilicitude e da culpa do réu .
Diria ainda que a inversão do ónus da prova, não é menos eficaz, na obtenção duma condenação, do que a confissão obtida sob tortura, método que não repugna a qualquer regime totalitário. E tão eficazes são uma e outro que podem levar, têm levado e levam à condenação de inocentes.
Está na tradição do PS ser um baluarte contra todos os totalitarismos. Admirar-me-ia, por isso, que não honrasse essa tradição nesta matéria, porque a liberdade também passa por aqui.