«Todas as sociedades tiveram o seu bode expiatório. O dia da expiação era um ritual para purificação da nação de Israel. Para a cerimónia, eram levados dois bodes, um deles era sacrificado e o outro, o bode expiatório, era tocado na cabeça, pelo sacerdote, que confessava os pecados dos israelitas e o enviava para o deserto, onde todos os pecados eram aniquilados.
Para a direita nacional e sobretudo para a comunicação social que o temia, por imprevisível, Sócrates é o bode expiatório ideal. Está ausente, não pode falar sem provocar mais ruído que o já criado, dedica-se a coisas aparentemente esotéricas como a filosofia política, os seus apoiantes reduzidos a um quadrado defensivo. Ainda por cima, o partido que dirigiu com mão forte durante meia dúzia de anos esteve longe de se dispor a defendê-lo, com isso deixando-se também cair num fojo. Os sinais recentes de reunião podem aqui ajudar ao exorcismo clarificador. Até que tal suceda, os clarins da direita infrene espreitam a mais ténue imagem, escutam o mais vago rumor de movimento do visado.
Certamente não deixariam passar em claro que o seu antigo e temido adversário de estimação emergisse da clandestinidade. O que quer que fosse o que fizesse, o emprego que aceitasse ou a que aspirasse, tudo seria objecto de inquisitória perseguição sob a forma de suposta investigação jornalística. Acontece que Sócrates aceitou funções de representação internacional de um laboratório suíço intervindo na área do sangue e seus derivados, com a reserva de o trabalho ser fora do país. Toda a sanha se projectou sobre o desempenho dessa empresa, entre nós, no tempo de Sócrates. Descobriu-se, pasme-se, que a empresa era um dos poucos fornecedores activos nos concursos centralizados que a Saúde então organizava. A passagem de centralizado a disperso, proposta pelos serviços competentes, parece racional. Mas tendo sido executada no seu tempo, todas as razões são boas para gerar suspeição e insídia. Tal como aconteceria se o processo fosse o oposto: a passagem de concursos descentralizados a centralizados, talvez até com agravada desconfiança.
Faça Sócrates o que fizer, será sempre ele a turvar a água que o lobo pretende beber. Ele ou alguém por ele. A sua única sorte é não ter sido ele tomado como o outro bode, o que sofreu sacrifício imediato. Assim, como refere a antiga cultura, ele foi apenas tocado na cabeça e mandado para o deserto.»
(Correia de Campos; "Bode expiatório", ontem no "Publico", sem link)