terça-feira, 7 de abril de 2009

Enriquecimento ilícito: O busílis da questão


Levantado em primeira mão, se não erro, pelo ex-deputado do PS, João Cravinho e depois de uma certa letargia motivada por dúvidas sobre a constitucionalidade das propostas, eis que o tema da criminalização do enriquecimento ilícito regressa de novo em força, pela mão de todos os partidos, tendo ainda agora sido objecto de nova tomada de posição por parte do PCP, durante as suas jornadas parlamentares. Só o PS parece manter alguma prudência por considerar (a meu ver, bem) que continuam por esclarecer as mencionadas dúvidas constitucionais levantadas pela questão.

Convém à partida, para evitar equívocos, saber do que se fala quando se propõe a criminalização do enriquecimento ilícito. É que, em boa verdade, o enriquecimento ilícito já é punido, na medida em que ao enriquecimento ilícito subjaz sempre um crime, que, por definição, tem também sempre associada uma punição, pois não há crime sem sanção. Quando se fala, pois, da criminalização do enriquecimento ilícito, o que, na verdade está em causa é a criação de um novo tipo legal de crime que, à falta de melhor, me permito designar por "crime de enriquecimento ilícito presumido".

E aqui, no "presumido" é que está o busílis da questão. Com efeito, a criação de tal tipo legal de crime, significa que os agentes abrangidos pela tipificação legal (que, por desconhecimento de formulações concretas, suponho incluirá apenas os titulares de cargos públicos e quem desempenhe funções públicas) terão de ser eles a provar a licitude do seu enriquecimento, quando as suas fortunas, face às fontes de rendimento declaradas e conhecidas não tenham aparente justificação. Ou seja, a criminalização do enriquecimento ilícito, nos termos que ficam acima definidos, implica a postergação do princípio constitucional da presunção de inocência e consequentemente a inversão do ónus da prova: não é o Estado que terá que provar que o agente incriminado é culpado, mas sim é este que terá que provar que é inocente.
Diga-se desde já que o abandono do preceito constitucional da presunção de inocência não é assunto de somenos importância. Pelo contrário, é algo de extremamente grave, pois trata-se de um princípio estruturante do estado de direito e é uma conquista civilizacional que levou séculos a alcançar, a par de outros de igual relevância, como, por exemplo, a proibição da tortura e a não admissão da confissão como meio único de prova em processo penal. Com a consagração destes princípios evitaram-se os abusos e as arbitrariedades do poder, uns e outras responsáveis por milhares e milhões de inocentes que foram (e ainda são, onde tais princípios não são respeitados) arrastados para as prisões, ou condenados à morte, pela forca, pela guilhotina e até (suma injúria) através do recurso à chama da fogueiras.

Já vi escrito que é possível a nova criminalização sem violação daquele princípio. Não conheço nenhuma formulação do novo tipo legal de crime que tenha alcançado tal desiderato e, muito sinceramente, não vejo como é que se vai conseguir, pois, pelo menos, aparentemente, estamos perante mais um caso em que se pretende alcançar a inatingível quadratura do círculo.

O que se deixa dito, dá para concluir que estou muito longe de ser um adepto da criação de tal tipo legal de crime. Pelo contrário, sou manifestamente contra, a menos que, tal como o PS tem defendido, seja possível concretizá-lo, sem ofensa dos princípios constitucionais, o que, volto a dizer, me parece pouco provável, senão impossível.

Esta posição, todavia, não significa que nada se faça ou que nada se possa fazer para sancionar a corrupção e outros crimes que estão na base do enriquecimento ilícito. Entendo mesmo que há que caminhar nesse sentido e que é possível fazê-lo. Não sou especialista em direito criminal, nem em direito processual penal, matérias em que já não toco há muito, mas parece-me que muito se pode avançar no sentido de se alcançar a punição de tais crimes, de um modo bem mais efectivo, quer agravando as molduras penais (o que é fácil, concedo) quer, sobretudo, admitindo novos meios de prova, quer deixando de atribuir a toda e qualquer irregularidade formal (sem qualquer relevância para o apuramento da verdade material) a virtualidade de, através da sua arguição, determinar a nulidade das provas carreadas para o processo. Neste último aspecto há mesmo, a meu ver, muito a alterar, pois não é aceitável, por exemplo, que a prova obtida através de escutas telefónicas e de outros meios tecnológicos, possa ser sistematicamente posta em causa por meras irregularidades formais. Isto, claro está, desde que a prova obtida o tenha sido por meios que possam ser objecto de verificação e controlo pela defesa, por forma a que seja assegurada a genuinidade da prova.
(Imagem daqui)

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