Sobre o tema do enriquecimento ilícito já escrevi o que penso sobre o assunto e o muito que tenho ouvido e lido nos últimos dias não chegou para me convencer do contrário do que
aqui defendi.
Não me admira que o assunto tenha merecido e continue a merecer a atenção do media e do público, sabido que o fenómeno da corrupção é uma das questões que preocupa a população portuguesa e ainda bem que assim é. Mas já me espanta que pessoas com responsabilidade e até com formação jurídica não mostrem repulsa pelo abandono do princípio da presunção de inocência em processo penal ao falar-se do enriquecimento ilícito (quando, na verdade, se trata de um princípio que é basilar do estado de direito) invocando até, para o efeito, que tal já se verifica, em alguns casos, no âmbito fiscal, como se um tal precedente justificasse o injustificável e como se os valores protegidos, num caso e noutro, fossem idênticos o que, obviamente, não é o caso, pois no âmbito do direito criminal o que está em causa é a vida, a liberdade e a honra das pessoas e não são estes os valores envolvidos no plano fiscal.
Sobre a importância histórica e o significado do princípio da presunção da inocência do arguido já disse o que penso no sítio acima referenciado e não irei repeti-lo. Todavia, parece importante que aqui se diga que a lógica do precedente é uma lógica perigosa, pois nada nos garante que no futuro, não haja quem se lembre dele, para estender a regra a todo e qualquer outro tipo legal de crime e seguindo, pelo mesmo caminho, vir a admitir, em nome da eficácia no combate ao crime em geral, a violação de outras regras, aceitando, por exemplo, a confissão como meio de prova exclusivo, incluindo a obtida sob coacção ou tortura (ainda que dando a uma e outra outros nomes), caso que já não é virgem, pois como se sabe foi doutrina seguida nos Estados Unidos durante a presidência de George W. Bush. Quando, sob qualquer pretexto, se abandonam os princípios, em boa verdade, nunca se sabe onde se pode ir parar.
Não deixa também de me surpreender que haja quem se indigne com a criação do cartão único do cidadão ou até com a introdução dos "chips" nos automóveis, falando-se a propósito, num caso e noutro, do regresso do "estado totalitário" e do big brother e que, pelo contrário, ache aceitável a violação do princípio constitucional da presunção de inocência em processo penal (por ora, limitada ao enriquecimento ilícito - no futuro logo se verá) como se este princípio não fosse uma garantia essencial da defesa do estado de direito, que, naqueles casos é reclamada, embora se trate de casos de bem menor relevância.
Mas o que me causa verdadeira admiração é ver o PSD (que até tem a democracia no nome) vir agora, oportunisticamente e sob falsa argumentação, engrossar o número dos que apelam e propõem a criação de um novo tipo legal de crime por mim já qualificado, no lugar citado supra, como "crime de enriquecimento ilícito presumido".
Digo oportunisticamente, porque ainda hoje li nas páginas do "Expresso" que "o PSD aproveitou o momento [o debate quinzenal no parlamento] para relembrar que retomou a proposta [...] de combate à corrupção e ao enriquecimento ilícito. "É a maneira de manter o Freeport na agenda, sem o referir explicitamente", admitiu ao Expresso um destacado dirigente do PSD[...]".
Sobre o oportunismo abono-me em boa fonte (julgo eu) e na mesma fonte vou beber para qualificar, de falsa, a argumentação de Paulo Rangel.
E falsa, porquê? Diz Paulo Rangel, citado no mesmo semanário, que "não há inversão do ónus da prova, porque é o Ministério Público que tem provar, primeiro, o enriquecimento e, segundo, que não há causa plausível para esse enriquecimento".
Esta afirmação é digna de pasmar. Na verdade, ainda ninguém se tinha lembrado (por se tratar de ideia tão absurda) que caberia ao próprio arguido fazer prova do seu enriquecimento, o que seria o mesmo que pedir-lhe que, sponte sua, se apresentasse à justiça, qual Egas Moniz, já com a corda ao pescoço. Mas, segundo Rangel, ao Ministério Público também caberá provar que não há causa plausível para o enriquecimento. Se assim for, diria eu que o Ministério Público, em vez de ver facilitado o seu trabalho vai, ao invés, encontrar maiores dificuldades, pois é sabido que é mais fácil fazer a prova de um facto do que a prova da sua inexistência. Digam-me só como é que o Ministério Público, sem a colaboração do arguido e sem inversão do respectivo ónus, vai provar a inexistência de uma qualquer doação, de um qualquer negócio lucrativo, realizado em Portugal ou em qualquer outra parte, ou de qualquer outro facto legítimo de aquisição?
Honestamente não vejo como. Mas, sendo assim, qual a utilidade e o sentido da proposta do PSD?
Utilidade, continuo a não a ver, e sentido só se for o da oportunidade, para lhe não chamar outra coisa!